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segunda-feira, 19 de outubro de 2020

De quando eu lia em voz alta

Fui convidado a servir um jovem senhor. As minhas obrigações se limitavam a ler para ele e ajudá-lo a se locomover em sua casa, algumas vezes seria possível que saíssemos dela, mas isso não foi combinado quando recebi o convite.

Não vou descrever aqui como era a casa desse senhor, tampouco o seu nome, pois poderá parecer para você, leitor curioso, que registro essa memória por vontade de provocar a sua bisbilhotice.

Não. Apenas escrevo para quando esquecer, venha aqui para lembrar. A memória é algo maravilhoso, que ninguém se dá conta, pois a tem e não percebe. A sua ausência também é prodigiosa, é como o vento, se vai e não nos damos conta. Quem se dá conta da sua ausência são os outros, esses mortais efêmeros que são incapazes de se reconhecerem na frente do espelho.

Quatro dias trabalhando com ele, já estava adaptado. A rotina era algo fácil, bem construída e sintética. Sabia o que deveria fazer sempre. Também não vou aqui enumerar o que fazia, mas como disse, era basicamente ler para ele.

Nunca cheguei naquela casa, depois de ultrapassar aquele portão grande de ferro preto, que o senhor não estivesse vestido, de banho tomado e penteado. Inicialmente, achei aquilo estranho, sempre chegava antes das 8h, mas depois entendi ou pelo menos me convenci da minha própria resposta para uma indagação idiota.

Pensei que, se eu acordando sempre no mesmo horário, tivesse que fazer aquelas coisas que você também faz, como escovar dentes, ir ao banheiro, tomar banho, colocar roupas limpas, beliscar um pão, e entre outras coisas banais; aquele senhor também fazia as suas.

Comecei a imaginar que ele também estava trabalhando, do seu jeito; como eu, ele tinha a sua rotina e eu era um estranho em seu trabalho, um tipo de servidor juvenil que aceitou, por desconhecimento e necessidade, esse tipo de trabalho incomum ao ser interrompido em uma esquina vendo uma vitrine da livraria de Avila.  

Era isso, parece que ele sofreu um acidente doméstico, se esqueceu que era velho e correu, saltou os degraus de uma escada no escuro; e juvenil que pensara arremeteu a cabeça em uma janela e dali sentiu a dor física que é sentida por todo mundo, velho ou jovem, a dor nos une.

Depois disso, quando ele se recuperou fui convidado a estar com ele. Antes disso, achava que sabia ler, mas nunca li tanto em voz alta. Quando isso acontece diariamente você percebe que não sabe ler e que ler é mais fácil quando não precisa emitir voz. Parece que lendo, só no cérebro é mais bonito, você não fica gaguejando, as mãos não suam, você não vê os sinais de pontuação, ou vê, mas não precisa fazer entonação, você faz isso automaticamente, no cérebro. Além disso, ler em voz alta requer outras práticas e até então eu não havia pensado.

Um dia, no começo, acho que era no terceiro dia ou no quarto, quando eu já estava me adaptando a rotina, ele fez uma cara estranha para a minha leitura matutina. Gelei! Claro, não sou idiota nem nada, sei que aquela leitura estava medonha, mas eu tentava fazer o melhor, juro! Quando observei a testa dele franzir, os olhos fechar, tive que perguntar se ele estava sentido dor.

Era muito inocente para fazer aquela pergunta, a dor era a minha voz que entrava em seus ouvidos e o martirizava. Acho que ele estava tentando se acostumar, mas deve ser difícil. Imagina você, ter que ficar comigo durante um dia inteiro ouvindo eu ler para você, coisa que você devia fazer melhor que eu. Foi horrível, dentro de mim senti muitas emoções.

Dentre essas emoções, não consigo escrevê-las todas, você sabe. As suas mãos suam, você se entristece, acha incompetente, inferiorizado, essas coisas que acontece quando a gente não sabe de nada.

Parei de ler e ouvi a sua voz, mas sem olhar pra ele, estava focado no livro. Ouvi a sua voz me perguntar qual era o meu nome, respondi imediatamente ninguém. Ele também respondeu rapidamente que ninguém é alguém e continuou dizendo que eu precisava ser exposto mais ao tempo. 

Juro que não entendi nada, até hoje me pergunto que raios respondi ninguém, o que é estar exposto ao tempo, que tempo? Exposto a quê? Mas segui lendo e o tempo foi passando.

Depois de um mês, indo naquela casa todos os dias, exceto nos sábados e domingos, comecei a ficar mais curioso, mas não me atrevia a perguntar coisas. Lembro que, naquela tarde na esquina, quando me convidaram para esse trabalho, me advertiram para não fazer perguntas.

Embora seria interessante saber o motivo daquele senhor estar ali, todo dia arrumado, penteado, de banho tomado e pronto para me ouvir fosse um mistério, as perguntas, que nasciam em minha mente, eram sobre os textos que lia diariamente. 

Tinha muitas coisas ali que não sabia como eu lia. Logicamente você deve imaginar como eu lia os nomes das pessoas estrangeiras, as cidades da Inglaterra, ou alguma passagem em outro idioma. Acho que essa era a parte mais divertida do dia, pois o senhor ria e pedia para eu repetir. 

No início fiquei constrangido, mas depois pensei que era bobagem, se eu não sei como ler aquilo eu não sei, e que mal há nisso? O primeiro nome que me lembro e mais engraçado até hoje foi: Rimbaud, depois Baudelaire.

Ah, a risada dele não era de deboche, acho que era só uma diversão mesmo, talvez quando ele lia, quando era possível, nunca tinha tocado nos seus ouvidos, ou na sua mente, aquelas palavras produzidas tão diferentes.

Por isso, acho que devemos encontrar prazer nas coisas que não reparamos. Aprendi que se olharmos bem ou pedirmos que outras pessoas nos contem sobre o que estão vendo, podemos nos divertir da mesma coisa banal que vemos todos os dias ou somente franzir a testa e pedir a ela que se exponha ao tempo.

Hoje me lembrei disso, por isso escrevo, para que essa tinta (virtual) perene preserve esse rastro da minha memória ainda não esquecida.


segunda-feira, 6 de abril de 2020

O gênio do crime e as suas memórias


Nasci em meio a uma família conturbada. Tínhamos dificuldades financeiras, enquanto meu pai trabalhava na Ferrovia Paulista S/A, como garçom, minha mãe cuidava da casa alugada em que vivíamos em Uberaba. Os recursos eram escassos, assim como a comida, as roupas, o material escolar, o uniforme. Entrei no pré-primário no ano de 1991, pela insistência de minha mãe. Ela queria que eu fosse direto ao primeiro ano, pois já sabia ler, mas ainda não tinha 7 anos. Fiz o pré e no ano seguinte, a diretora me aceitou na primeira série do ensino fundamental.

São muito fragmentadas essas memórias tão longínquas. Acredito que a minha mãe me ensinava algumas palavras em casa. Lembro de ela comprar um caderno brochura de folhas amarelas para eu repassar todo o conteúdo do caderno velho ao novo. Ela dizia que a minha letra estava ilegível e que assim não poderia continuar. Lembro também dela começar a copiar o conteúdo do caderno velho ao novo, em uma atitude exemplar, e constantemente pontuar o desleixo da minha inaptidão com a escrita. Ela dizia: “Veja, é assim que se faz. Agora você irá continuar”. Acredito que devido a essa atitude e várias outras semelhantes de minha mãe fizeram com que a minha caligrafia se desenvolvesse a ponto de ouvir elogios das professoras e algumas delas adjetivarem de letra de menina. “Superei o obstáculo com a escrita”.

Foi na sexta série, em 1998, que tive a primeira experiência significativa com a leitura. Antes disso, apenas ouvia as histórias bíblicas que a minha avó nos contava, a mim e aos meus primos, e é difícil me lembrar de outras experiências de leitura no passado. No sexto ano, a professora Juliana era uma mulher magra, de cabelos loiros e soltos, de rosto fino e alegre. Ela usava jeans e camiseta, trazia consigo sempre o diário de classe azul e alguns livros. Era uma professora que conseguia fazer com que uma classe com mais de 30 crianças ficasse em silêncio para ouvir a sua história, todo o final de aula.

O que mais me chama atenção nessas memórias é o que permanece. Não é possível me lembrar das suas aulas de gramática ou interpretação de texto. Não sou capaz de dizer como ela nos dava as famosas orações subordinadas ou explicava os fenômenos linguísticos, só me lembro dela ler para todos nós.

No silêncio daquelas tardes, em que eu e meus colegas, ficávamos ouvindo sua voz passear tranquilamente por aquela sala e chegar aos nossos ouvidos. A sua maneira de iniciar um novo livro era mágica e instigante. O seu tom de voz era pausado, ela esperava pelas nossas feições, espreitava as nossas reações, e por fim, nos mostrava a capa do livro e fazia um breve resumo da história.

Uma dessas histórias, contadas nos minutos finais de cada aula de língua portuguesa, foi “O gênio do Crime” de João Carlos Marinho. A professora tinha uma maneira de contar aquela história que eu nunca tinha ouvido em nenhum lugar. As vozes das personagens, a entonação, as pausas, nos retiravam daquele ambiente, parecia que estávamos todos dentro da história. Ela não nos fazia perguntas, não cobrava para a prova, não pedia resumo nem perguntava o que havíamos entendido, apenas lia. Dessa história, uma das personagens que mais me marcou foi o Mister John, um detetive escocês. Não pelo seu carisma ou pela sua relevância durante a narrativa, mas pelo jeito com que a professora mudava a voz ao ler suas falas. Era tão diferente, bonito. Eu me perguntava como a professora lia daquela maneira, como ela conseguia.

A história era estimulante, era um crime que ia sendo desvendado por crianças como eu. Os protagonistas eram inteligentes, claro! Mas também faziam travessuras, cometiam erros e aquela história marcou a minha vida. Anos mais tarde retornei às páginas do texto do João Carlos Marinho e encontrei ali um abraço, uma revigorante sensação de carinho e de lembrança. Fiz uma leitura compartilhada com o meu sobrinho tentando fazer a mesma voz do Mister John, fracassei! Pois tentei recuperar aquela lembrança tão amável que era impossível imitar. Resolvi então deixar que o meu sobrinho lesse e foi divertido, gargalhamos juntos, contei a ele que anos antes a minha professora tinha lido essa história na escola e que naquele tempo ela fazia o melhor Mister John que eu já ouvira. “Superei o obstáculo com a leitura”.

No ensino médio comecei a escrever alguns rascunhos, dava para alguns colegas ler. Naquela época a professora pedia redação e o gênero que eu mais gostava era cartas. Não sei dizer, mas as cartas têm uma maneira atenciosa e informativa de apresentar seu conteúdo. Escrevia também histórias breves, gostava de muito de descrições, nomes diferentes. Todos esses textos se perderam, mas não a minha capacidade de recordar deles.

Mais tarde, criei um blog em que escrevia sobre desilusão amorosa. A primeira leitora desses textos era a minha irmã, depois alguns de meus amigos. A minha irmã dizia que era lindo e eu concordava, em uma contemplação juvenil e romântica achava que por meio das palavras conseguia materializar toda aquela insatisfação idealista de pesarosa dor das relações efêmeras dos apaixonados precoces.

Hoje, não mais escrevo como antes, as obrigações de leitura e de escrita são mais acadêmicas e profissionais. Percebi que ler e escrever é um hábito e é necessário cultivá-lo para melhorar. Não tenho mais uma ideia romântica de “dom” da escrita e nem acredito mais que a leitura é uma característica dos cultos. O que imagino saber é que com cuidado, atenção e orientação todos podemos ler e escrever, cada um no seu estágio rumo a um desenvolvimento particular e significativo.