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segunda-feira, 6 de abril de 2020

O gênio do crime e as suas memórias


Nasci em meio a uma família conturbada. Tínhamos dificuldades financeiras, enquanto meu pai trabalhava na Ferrovia Paulista S/A, como garçom, minha mãe cuidava da casa alugada em que vivíamos em Uberaba. Os recursos eram escassos, assim como a comida, as roupas, o material escolar, o uniforme. Entrei no pré-primário no ano de 1991, pela insistência de minha mãe. Ela queria que eu fosse direto ao primeiro ano, pois já sabia ler, mas ainda não tinha 7 anos. Fiz o pré e no ano seguinte, a diretora me aceitou na primeira série do ensino fundamental.

São muito fragmentadas essas memórias tão longínquas. Acredito que a minha mãe me ensinava algumas palavras em casa. Lembro de ela comprar um caderno brochura de folhas amarelas para eu repassar todo o conteúdo do caderno velho ao novo. Ela dizia que a minha letra estava ilegível e que assim não poderia continuar. Lembro também dela começar a copiar o conteúdo do caderno velho ao novo, em uma atitude exemplar, e constantemente pontuar o desleixo da minha inaptidão com a escrita. Ela dizia: “Veja, é assim que se faz. Agora você irá continuar”. Acredito que devido a essa atitude e várias outras semelhantes de minha mãe fizeram com que a minha caligrafia se desenvolvesse a ponto de ouvir elogios das professoras e algumas delas adjetivarem de letra de menina. “Superei o obstáculo com a escrita”.

Foi na sexta série, em 1998, que tive a primeira experiência significativa com a leitura. Antes disso, apenas ouvia as histórias bíblicas que a minha avó nos contava, a mim e aos meus primos, e é difícil me lembrar de outras experiências de leitura no passado. No sexto ano, a professora Juliana era uma mulher magra, de cabelos loiros e soltos, de rosto fino e alegre. Ela usava jeans e camiseta, trazia consigo sempre o diário de classe azul e alguns livros. Era uma professora que conseguia fazer com que uma classe com mais de 30 crianças ficasse em silêncio para ouvir a sua história, todo o final de aula.

O que mais me chama atenção nessas memórias é o que permanece. Não é possível me lembrar das suas aulas de gramática ou interpretação de texto. Não sou capaz de dizer como ela nos dava as famosas orações subordinadas ou explicava os fenômenos linguísticos, só me lembro dela ler para todos nós.

No silêncio daquelas tardes, em que eu e meus colegas, ficávamos ouvindo sua voz passear tranquilamente por aquela sala e chegar aos nossos ouvidos. A sua maneira de iniciar um novo livro era mágica e instigante. O seu tom de voz era pausado, ela esperava pelas nossas feições, espreitava as nossas reações, e por fim, nos mostrava a capa do livro e fazia um breve resumo da história.

Uma dessas histórias, contadas nos minutos finais de cada aula de língua portuguesa, foi “O gênio do Crime” de João Carlos Marinho. A professora tinha uma maneira de contar aquela história que eu nunca tinha ouvido em nenhum lugar. As vozes das personagens, a entonação, as pausas, nos retiravam daquele ambiente, parecia que estávamos todos dentro da história. Ela não nos fazia perguntas, não cobrava para a prova, não pedia resumo nem perguntava o que havíamos entendido, apenas lia. Dessa história, uma das personagens que mais me marcou foi o Mister John, um detetive escocês. Não pelo seu carisma ou pela sua relevância durante a narrativa, mas pelo jeito com que a professora mudava a voz ao ler suas falas. Era tão diferente, bonito. Eu me perguntava como a professora lia daquela maneira, como ela conseguia.

A história era estimulante, era um crime que ia sendo desvendado por crianças como eu. Os protagonistas eram inteligentes, claro! Mas também faziam travessuras, cometiam erros e aquela história marcou a minha vida. Anos mais tarde retornei às páginas do texto do João Carlos Marinho e encontrei ali um abraço, uma revigorante sensação de carinho e de lembrança. Fiz uma leitura compartilhada com o meu sobrinho tentando fazer a mesma voz do Mister John, fracassei! Pois tentei recuperar aquela lembrança tão amável que era impossível imitar. Resolvi então deixar que o meu sobrinho lesse e foi divertido, gargalhamos juntos, contei a ele que anos antes a minha professora tinha lido essa história na escola e que naquele tempo ela fazia o melhor Mister John que eu já ouvira. “Superei o obstáculo com a leitura”.

No ensino médio comecei a escrever alguns rascunhos, dava para alguns colegas ler. Naquela época a professora pedia redação e o gênero que eu mais gostava era cartas. Não sei dizer, mas as cartas têm uma maneira atenciosa e informativa de apresentar seu conteúdo. Escrevia também histórias breves, gostava de muito de descrições, nomes diferentes. Todos esses textos se perderam, mas não a minha capacidade de recordar deles.

Mais tarde, criei um blog em que escrevia sobre desilusão amorosa. A primeira leitora desses textos era a minha irmã, depois alguns de meus amigos. A minha irmã dizia que era lindo e eu concordava, em uma contemplação juvenil e romântica achava que por meio das palavras conseguia materializar toda aquela insatisfação idealista de pesarosa dor das relações efêmeras dos apaixonados precoces.

Hoje, não mais escrevo como antes, as obrigações de leitura e de escrita são mais acadêmicas e profissionais. Percebi que ler e escrever é um hábito e é necessário cultivá-lo para melhorar. Não tenho mais uma ideia romântica de “dom” da escrita e nem acredito mais que a leitura é uma característica dos cultos. O que imagino saber é que com cuidado, atenção e orientação todos podemos ler e escrever, cada um no seu estágio rumo a um desenvolvimento particular e significativo.