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domingo, 22 de setembro de 2019

Cântico da Liberdade



Praia é a sua capital, seu hino nacional, intitulado “Cântico da Liberdade”, reúne elementos conhecidos da temática libertária e fraterna de um povo arquipélago, assim Cabo Verde é “abraçado” pelo oceano atlântico, tem sua língua oficial o Português, seu clima é árido e a escassez de recursos naturais e de chuvas revelam uma predisposição da sua população a emigrar.

Dessa forma a literatura cabo-verdiana refletirá a problemática do evasionismo, ou seja, uma tendência da população em abandonar o país devido as condições difíceis de vida. Um dos principais nomes desse movimento evasionista é Osvaldo Alcântara, pseudônimo poético de Baltasar Lopes (1907 – 1989), que inicia uma espécie de “pasargadismo” cabo-verdiano.

Para exemplificar a temática da evasão, temos em seu poema “Itinerário para pasárgada” uma alusão ao poema “Vou-me embora pra Pasárgada” do poeta modernista brasileiro Manuel Bandeira, assim como o poema de Bandeira não há rimas e apresenta versos livres. Essa intertextualidade que transcende fronteiras nacionais é estudada pelas teorias da Literatura Comparada.

Para Tenório (2015, p. 1) “Ambos citam Pasárgada no início do poema; Bandeira diz que vai, Alcântara afirma ter saudade; há uma descrição minuciosa de como é a vida em Pasárgada; Bandeira é amigo do Rei e faz de tudo o que quiser, Alcântara analisa os comportamentos dos habitantes e até o que há no céu.”

Saudade fina de Pasárgada… / Em Pasárgada eu saberia / onde é que Deus tinha depositado / o meu destino… / E na altura em que tudo morre…

[...]

Na hora em que tudo morre,/ esta saudade fina de Pasárgada / é um veneno gostoso dentro do meu coração.



Jorge Barbosa (1902 – 1971) e Manuel Lopes (1907 – 2005) são também dois nomes consagrados na literatura cabo-verdiana em que assim como Baltasar Lopes, fundam “Claridade”, revista considerada o marco da independência literária cabo-verdiana, sob o princípio de “fincar os pés na terra”, ou seja, preocuparam-se em “produzir uma literatura baseada na realidade cabo-verdiana e mais atenta às realidades de cada dia”. (COSTA, 2016).

Os poemas escolhidos para tratar o evasionismo em Jorge Barbosa, tendo por tema a insularidade são: “Poema do mar” e “Irmão” que constam em seu segundo livro intitulado “Ambiente” de 1941, em Manuel Lopes o “Poema de quem ficou” de 1949 do livro homônimo.



POEMA DO MAR

[...] O Mar!

a esperança na carta de longe

que talvez não chegue mais!...

[...] Este convite de toda a hora

que o Mar nos faz para a evasão!

Este desespero de querer partir

e ter que ficar!





IRMÃO

Cruzaste Mares

na aventura da pesca da baleia,

nessas viagens para a América

de onde às vezes os navios não voltam mais.

[...]



Ser levado talvez um dia

na onda alta de alguma estiagem!

como um desses barquinhos nossos

que andam pelas Ilhas

e o Oceano acaba também por levar um dia!



É possível observar nos fragmentos supracitados, “Poema do mar” e “Irmão”, os temas da evasão e da insularidade. 

No primeiro poema está um convite para evadir: “o Mar nos faz para a evasão”, embora há também uma discussão sobre a tensão materializada pelo movimento dramático de ir e voltar das ondas do mar, é notório observar o explícito sentimento de indecisão, refletindo a instabilidade do eu poético: “Este desespero de querer partir e ter que ficar! ”. 

No segundo poema o tema da evasão também está associado ao mar, porém aqui é através de um propósito definido, aparentemente uma solução aos problemas sofridos pelo sujeito poético, em que a evasão se torna um caminho escolhido por outros que foram e não regressaram: “nessas viagens para a América de onde às vezes os navios não voltam mais”.

Conforme Silva (2011, p. 21): “Jorge Barbosa será sempre associado à evasão decorrente da insularidade que atravessa a sua obra, mas essa descrição evasionista revela-se documental, de uma realidade que o poeta deseja fortemente registar”.

Para inferir a evasão no poema de Manuel Lopes, “Poema de quem ficou”, precisamos ler com mais cuidado, pois o tema não está totalmente marcado na superfície textual. 

Comecemos a perceber a ideia do evasionismo refletida no título, quem ficou fora aquele que não foi, portanto, o poema irá discutir a visão do eu lírico por meio dessa perspectiva, daquele que permaneceu, sentindo saudades, inquietudes, esperanças e com expectativa “que nunca viram teus olhos no mundo que percorreste...”

Eu não te quero mal

por esse orgulho que tu trazes;

por esse teu ar de triunfo iluminado

com que voltas…


… Que teu irmão que ficou

sonhou coisas maiores ainda,

mais belas que aquelas que conheceste…

– bosques de névoa, rios de prata, montanhas de oiro–


que nunca viram teus olhos

no mundo que percorreste…


É possível perceber também que no poema de Lopes há também a ideia do partir e ficar, lembre-se do “Poema do Mar” de Jorge Barbosa, representado pelo eu lírico que se foi e o que permaneceu, o emigrado que regressa e o irmão que ficou a sonhar coisas maiores.

É perceptível identificar esse embate sobre a ideia de evasão nos poemas, sendo que a maioria das vezes o eu lírico se comporta de uma maneira instável, entre partir e permanecer, não sendo totalmente livre, mas sempre registrando uma culpa, mesmo que levemente interiorizada, culpa está refletida pelo indecisão e tensão nos versos. 

Portanto é possível inferir que a partir desse sentimento tenha gerado um movimento contrário denominado anti-evasionista registrado a partir da década de 1960 e 1970 apoiado especificamente pelo poeta cabo-verdiano Corsino Fortes (1933 – 2005) morto aos 82 anos em que usou a poesia como forma de liberdade e de afirmação identitária.

Para exemplificar melhor esse movimento anti-evasionista tomemos os poemas de Ovídio Martins (1928 – 1999) que assinalam explicitamente esse sentimento. No livro, repare no título: “Gritarei, berrarei, matarei: não vou para Pasárgada” (1973), temos os poemas: “Processo” e “Anti-evasão”.


PROCESSO

Não é verdade / meu irmão / não acredites nisso / A fome que vimos / gramando / século de riba de século / não foi a estiagem / que a pariu [...]

A estiagem nada / tem com isso / Quem é / que tempo sem conta / te vem explorando / terra nossa / Quem é / que nos anos de crise / te condenou à morte / povo meu.


ANTI-EVASÃO


Pedirei / Suplicarei / Chorarei / Não vou para Pasárgada


Atirar-me-ei ao chão / e prenderei nas mãos convulsas / ervas e pedras de sangue / Não vou para Pasárgada


Ambos fragmentos dos poemas estão em um livro que alude ao poeta brasileiro Manuel Bandeira, e seu reconhecidíssimo poema. 
É notório o uso dessa intertextualidade para firmar que não interessa o sentimento de evadir, ir embora para um outro lugar, pois a terra, a nação do eu lírico é aquela com as suas mazelas e belezas, frutos de uma história libertária e de uma busca identitária que reuniu braços e penas, a força e a resistência, é alvo de um lar construído por seus filhos nacionais.

A presença do panafricanismo na poesia africana de língua portuguesa

A construção de identidade de um povo, entre outros constituintes, pode se dar por meio da ideia de nação, aparado pelo espaço geográfico delimitado e a língua usada por esse povo, em que ambos contribuem para a construção de uma identidade nacional.
Esse conceito, identidade nacional, é muito complexo, pois nomeia e abrange diversos sentimentos de pertencimento a um local determinado, a uma consciência coletiva, aos valores míticos e aos valores racionais. É importante também salientar que a identidade nacional é formada por escritores intelectuais e pela percepção histórica e social envolta dos acontecimentos, quase sempre condicionado a uma visão, em outras palavras, “aquilo a que chamamos identidade nacional projecta aspirações colectivas, que se exprimem mediante narrativas históricas e crenças acerca do valor e da diferença em relação às nações vizinhas ou próximas. ”, escreveu o professor Nuno nos comentários de um texto meu no blog acadêmico.
Cabendo essa tentativa de expor e tentar entender a complexidade desse conceito, retomemos, resumidamente, alguns fatos sobre a história da colonização portuguesa em Angola.
É sabido que os portugueses colonizaram Angola a partir do século XV tendo esse povo vivido desde então o processo desumano, cruel, escravocrata e exploratório por 5 séculos, ou seja, apenas em 1975, quando Agostinho Neto proclama a independência, Angola se converte em um país independente.
Também é notório evidenciar sobre a problemática divisão do continente africano, em que muitos estados tiveram suas fronteiras postas sem qualquer preocupação com as pessoas que ali viviam, é dizer que foram submetidas a uma divisão territorial sem dar importância em como o povo se organizavam politicamente.
Tendo por base essas informações é possível entender melhor a poesia de Agostinho Neto (1922 – 1979) e de Viriato Cruz (1928 – 1973), ambos poetas angolanos que viveram pouco, 57 anos e 45 anos respectivamente, e que sofreram, como o seu povo, a imposição linguística, cultural e territorial de uma nação colonizadora e opressora.
Assim os poemas: “Mamã negra (Canto de esperança) ”, de Viriato Cruz, e “Adeus à hora da largada”, de Agostinho Neto possuem em si um apelo à liberdade e a humanidade desta população negra escravizada, privada de sua liberdade, encarcerada por suas ideias libertárias, marcada por guerras internas e externas, vítimas da fome e da sede, subjugada por uma supremacia racial vergonhosa e imoral que massacrou um continente inteiro negando-o a luz e a esperança.
Pode-se extrair a partir do título do poema, “Mamã negra (canto de esperança) ”, quatro elementos fundamentais para a atribuição de sentido deste: “Mamã”, relativo à mãe, princípio de nascença, ideia concebida como forma de natureza geradora de um determinado povo; “negra”, característica de um povo, não necessariamente definido por fronteiras territoriais; “canto” ideia de som, musicalidade e por fim “esperança”, sentimento motivador que está contido nessa manifestação artística.
Assim como no primeiro poema, Agostinho Neto em “Adeus à hora da largada” também irá remeter a ideia simbólica de “mãe” em seu poema para também referir-se a África, “todas as mães negras cujos filhos partiram”. É interessante perceber que neste poema não se espera a “mítica esperança”, pois devido a todas as suas experiências de vida, cabe ao eu poético não mais esperar e sim perseguir, no sentido de buscar, alcançar esse desejo, valendo da afirmativa: “Eu já não espero / sou aquele por quem se espera”. Tal coragem e determinação revela a autenticidade e a clareza das ações do eu poético que contribuirá para o desenvolvimento desse povo. “Entoaremos hinos à liberdade / quando comemorarmos / a data da abolição desta escravatura”, é dizer que todos os filhos da África irão em busca de “luz”, “vão em busca de vida”.
Para discutir com mais clareza a presença do pan-africanismo é pertinente retomar a ideia de “mãe”, de natureza simbólica registrada e evidenciada em ambos poemas, que de acordo com Santos (2007, p. 27): “Essa Mãe era, ao mesmo tempo, mulher e terra, configurada nos mesmos padrões das Grandes Mães neolíticas, deusas da fertilidade e da fecundidade, e representava, no contexto angolano (e africano), a mãe negra biológica, a nação angolana e o continente africano, numa perspectiva pan-africanista que concebia a África como a progenitora da raça negra e também a terra prometida de um povo em diáspora”.
Outro elemento marcante nos dois poemas são as vozes que ressoam em seus versos: “a esperança somos nós / os teus filhos”, “abandonados ao ritmo dum batuque de morte / teus filhos”, vozes estas representativas de um povo marcado pela opressão: “Vozes dos engenhos dos bangüês das tongas dos eitos das pampas das minas! ”, “Vozes de toda América! Vozes de toda África!/ Voz de todas as vozes”, portanto são filhos “que trazem a presença negra para criar um diálogo de esperança. E, nenhuma dessas vozes tem mais importância que a outra, pois cada uma delas é um enunciado que dialoga com outro para criar o canto uníssono da humanidade”. (CÍRIACO, 2013, p. 2). Para Santos (2007, p. 28): “em Angola, o canto à Mãe-África tornou-se então um grito de afirmação da identidade angolana (angolanidade) e africana (africanidade), resgatando o elemento ancestral africano acobertado pela assimilação cultural européia promovida pelo colonialismo, o que resultou no (re)nascimento do sonho, da esperança e da certeza de um amanhecer livre das amarras do sistema colonial português”.
Para conclusão desta breve exposição feita, cabe aqui também alargar a referenciação dessas questões essenciais a poesia angolana à luz de outros poemas de Agostinho Neto que reforçam as ideias discutidas.
Em “Sagrada Esperança”, título muito propício para a tentativa de liberdade e humanidade buscada pelo povo africano podemos observar a remissão da musicalidade, do canto, da luta, do sofrimento, nos versos de “Sinfonias”: “A melodia crepitante das palmeiras”, “E a música dos homens / lambidos pelo fogo das batalhas inglórias”, “a luta gloriosa do povo”, “A música / que a minha alma sente”.
Também é possível identificar em “Confiança” os versos que retratam a retirada de pessoas de seu lugar de origem e transladados a outra parte do globo a fim de exploração, maltratados, violentados, construtores de um novo mundo, que esquecidos carecem de o mais essencial, o alimento: “O oceano separou-me de mim / enquanto me fui esquecendo nos séculos”, “Enquanto o sorriso brilhava / no canto de dor / e as mãos construíram mundos maravilhosos”, “As minhas mãos colocaram pedras / nos alicerces do mundo /mereço o meu pedaço de pão”.
Por fim no poema: “Não me peças sorrisos” trata-se da condição servil daqueles que estando em condições precárias e em constante sofrimento, sem glória, sem sorrisos, constroem arduamente um mundo habitado pela violência e escravidão: “Não me exijas glórias / que sou eu o soldado desconhecido".

Lugar e representação da infância e da memória na lírica de Manuel Bandeira


O presente ensaio tem por objetivo abordar o lugar e a representação da infância e da memória na lírica de Manuel Bandeira, mostrando como esse tema se apresenta como uma possibilidade de recuperação de plenitude, porém falha em seu intento, embora seja, o esforço, vigoroso, é irrecuperável. É dizer: essa experiência literária como tentativa de superação humana.
            Para esse objetivo foram selecionados treze poemas, dentre as obras do poeta, em uma perspectiva cronológica (1924 – 1960) e em seguida realizado um breve diálogo entre eles. Portanto temos, a seguir, a coletânea dos seguintes poemas: “Balõezinhos”, “Minha Terra” e “Na Rua do Sabão”, do livro: “O Ritmo Dissoluto” publicado em 1924; “Porquinho-da-Índia” e “Profundamente” de “Libertinagem”, 1930; “Trem de Ferro” de “Estrela da Manhã”, 1936; “Versos de Natal” de “Lira dos Cinquent’anos”, 1940; “Infância”, de “Belo Belo”, 1948; “Elegia de Verão”, “Natal sem Sinos”, e “Tema e Variações” do “Opus 10”, 1952; e por fim “A onda” e “Recife” de “Estrela da Tarde”, 1960.
            Iniciamos o propósito desse ensaio apresentando primeiramente o poema “Balõezinhos” em que o lugar: “Na feira livre do arrebaldezinho” (BANDEIRA, 1993, p. 120) traz a representação da infância e da memória por meio da lírica do poeta. Nesse poema é possível também observar como esse espaço e seus personagens atuam na criação de uma cena prosaica cotidiana, em que a memória aliada à infância recria uma atmosfera lúdica e pueril. Ainda sob uma perspectiva infantil, tendo aqui apenas um único propósito de valoração, “[os meninos pobres] sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável” (BANDEIRA, 1993, p. 121), pois o que é importante, essencial, necessário para a criança ainda é o sonho, o desejo, a brincadeira.
Também é possível observar o lugar, no poema “Minha Terra”, como memória de um passado já distante: “Saí menino de minha terra / Passei trinta anos longe dela” (BANDEIRA, 1993, p. 201) em que a revisitação traz uma realidade incômoda e frustrante para o sujeito poético em que esbraveja ao discordar com a adjetivação que dão ao seu Recife, “É hoje uma bonita cidade. / Diabo leve quem pôs bonita a minha terra! ”. (BANDEIRA, 1993, p.201).
Podemos encontrar também em “Na rua do sabão” esse sentimento de recuperação de plenitude por meio das imagens infantis que povoam todo o poema. Iniciado a partir de uma alusão a um refrão popular, essa retomada instala uma identidade da primeira infância no poema em que permite uma viagem no tempo. Há também outros elementos que podem representar a infância ao longo do poema como a gritaria maldosa da molecada na rua e a vontade que as crianças tinham em que caísse o balão. Assim como neste e em outros poemas é possível associar a leitura biográfica do poeta com a manifestação do eu lírico, especialmente aqui, ao relatar quem fez o balãozinho de papel foi o filho da lavadeira, “um que trabalha na composição do jornal e tosse muito” (BANDEIRA, 1993, p. 119), faz com que o leitor se aproprie dessa aproximação em uma possível leitura.
“Porquinho-da-Índia” e “Profundamente, publicados em 1930 no livro “Libertinagem”, também retomam a ternura que o eu lírico imprime em seus versos. O primeiro nos apoia em uma interpretação das primeiras experiências, da criança de seis anos ao amar seu animalzinho de estimação e tê-lo como a sua primeira namorada, e ainda das primeiras frustrações, de não ser correspondido: “não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...” (BANDEIRA, 1993, p. 130). O segundo remete a um lugar festivo em que o sujeito poético é impossibilitado de acompanhar, tal lugar é alegre e iluminado, há cantos e risos. “Quando eu tinha seis anos / não pude ver o fim da festa de São João” (BANDEIRA, 1993, p. 139). Esse poema pode levar o leitor a dois núcleos temporais, um passado: da infância, da festa; e um presente: em que o eu lírico relembra saudosamente aquele tempo. Ambos núcleos há o sono, porém com sentidos diferentes, enquanto na primeira parte do poema o sono é associado ao seu sentido literal, de adormecer: “estavam todos dormindo”, a segunda parte o sono está associado a morte: “estão todos dormindo”. 
“Trem de Ferro” publicado no livro “Estrela da Tarde” de 1960, também representa essa infância recuperada por meio da poesia de Manuel Bandeira. O ritmo do poema alude ao ritmo do trem, esse caráter lúdico alinhado a sua musicalidade pode ser um exemplo de uma busca da criança dentro de cada um, em que independentemente da idade, nos leva pela velocidade e balanço das linhas.
“Versos de Natal”, poema publicado no livro “Lira dos Cinquent’anos” de 1940, nos pode revelar a ideia do “menino que não quer morrer” (BANDEIRA, 1993, p. 171), esse menino, que agora não tão menino assim, devido a implacável ação do tempo, “pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta [na véspera do Natal]” (BANDEIRA, 1993, p. 171).
“Infância”, de “Belo Belo”, publicado em 1948 traz diversos lugares de uma infância rememorada. Inicialmente Petrópolis e aspectos como uma corrida de ciclistas, um bambual debruçado no rio e brinquedos pelo chão trazem ao leitor um cenário simples em que o sujeito poético se rende a impossibilidade de “romper os ruços definitivos do tempo” (BANDEIRA, 1993, p. 208). Ainda nesse poema há outros lugares, como a casa de São Paulo, a praia de Santos, Petrópolis novamente, Pernambuco, a casa da Rua União, que criam essa atmosfera nostálgica e saudosa. Este poema também é possível associar as suas enumerações de lugares, de feitos, de lembranças a uma leitura biográfica encerrada com o quarteto: “Com dez anos vim para o Rio. / Conhecia a vida em suas verdades essenciais. / Estava maduro para o sofrimento / E para a poesia! ” (BANDEIRA, 1993, p. 209).
Em “Opus 10”, livro publicado em 1952 em que os poemas: “Elegia de Verão”, “Natal sem Sinos”, “Retrato” e “Tema e Variações” são outros exemplos do tema aqui explorado. As citações a seguir reforçam essa natureza do eu poético em estabelecer vínculo a suas memórias, porém sabe que tudo mudou, ou seja, nada é hoje como era antes: “Zinem as cigarras: zino, zino, zino... / Como se fossem as mesmas / Que eu ouvi menino”; “Ó verões de antigamente! ”; “Não são as mesmas que eu ouvi menino”; “Deem-me as cigarras que eu ouvi menino”. (BANDEIRA, 1993, p. 215).  “Natal sem Sinos” volta a uma infância desde o lugar do presente, a observação através do prisma da memória continua sendo nostálgica. Os sinos, do passado, podem ser associados ao barulho das crianças: “Ah meninos sinos / De quando eu menino! ” (BANDEIRA, 1993, p. 220) em que na altura o sujeito poético já não mais o encontra: “A noite é sem silêncio e no entanto onde os sinos [presente] do meu Natal sem sinos [passado]” (BANDEIRA, 1993, p. 220). “Tema e Variações” é um outro poema desse livro que alude a ideia de tempo passado, mas agora não é explícito a marca da infância, porém se pode sugerir que a infância, por ser tão cara e rememorada de maneira terna e saudosa pode ser também um dos possíveis ideais de sonho. Porém ao despertar para se deparar com a realidade, o sentimento experimentado é triste, é pranto. Podemos inferir que “Ter estado” (BANDEIRA, 1993, p. 215) menino é motivo de sonho agora e que a única realidade possível é chorar de repente ao despertar e concluir que tivera sonhado.
Por fim os poemas: “A onda” e “Recife” de “Estrela da Tarde”, 1960 finalizam a tentativa de abordar o lugar e a representação da infância e da memória na lírica de Manuel Bandeira. O poema “A onda” é composto por 10 versos curtos; em um caráter lúdico mistura as palavras “onda”, “aonde, “anda” e “ainda” (BANDEIRA, 1993, p. 267) em um jogo de sons convertendo-as em ritmo e movimento. “Recife” é o poema que irá recordar o passado, a infância, a partir do presente, traz a perspectiva de desculpa ou justificativa nos primeiros versos, segue na seguinte estrofe o sentimento de saudade e perpétuo lembrar. O eu poético também esclarece que sua saudade é sentida, porém uma saudade do “Recife de antes” como nos diz na terceira estrofe: “Não como és hoje, / Mas como eras na minha infância, / Quando as crianças brincavam no meio da rua” (BANDEIRA, 1993, p. 249). Seguidamente vai pontuando o lugar do passado e se questiona sobre os personagens de outrora e por fim reflete para que servem estátuas, e uma possível eternização por meio de um busto, para o eu poético “se possível, / Um cantinho no céu” (BANDEIRA, 1993, p. 249).

A Invenção da Infância: seu contexto e seu enunciado

Neste trabalho, examinaremos o contexto e o enunciado de pessoas, especificamente mães e crianças, presentes no documentário “A Invenção da Infância”. Lançado em 2000 e produzido por Liliana Sulzbach e Mônica Schmiedt, no Rio Grande do Sul, com duração de 26 minutos, o documentário reflete sobre o que é ser criança e a relação com a infância.
Para isso usaremos o conceito da Pragmática, conforme Fiorin (2015, p. 166) “é a ciência do uso linguístico, estuda as condições que governam a utilização da linguagem, a prática linguística”, assim como ela “deve explicar como os falantes são capazes de entender não literalmente uma dada expressão, [...] devem mostrar como se fazem inferências necessárias para chegar ao sentido dos enunciados”. (FIORIN, 2015, p. 168). Também, para este breve estudo, usaremos os princípios e métodos de Catherine Kerbrat-Orecchioni, que conceitualiza a análise das conversações, o contexto e o material verbal, paraverbal e não verbal.
Por fim, tentaremos entender os processos pragmáticos que permeiam os discursos analisados e seus contextos a fim de aplicar ao material analisado os procedimentos teóricos propostos para a atribuição de sentido.


            As reflexões e análises deste trabalho são fundamentadas a partir da linguagem em uso defendidas por Fiorin (2005) e pelos conceitos da análise da conversação prescritos por Kerbrat-Orecchioni (2006).
            Conforme menciona Fiorin (2005, p. 166) “a Pragmática é a ciência do uso linguístico, estuda as condições que governam a utilização da linguagem, a prática linguística”, usaremos esse referencial teórico para observar, em alguns trechos do documentário, a linguagem em uso. Usaremos também a vocação comunicativa da linguagem verbal, o que seria conforme os postulados de Kerbrat-Orecchioni (2006) a efetividade do exercício da fala, que implica normalmente uma alocução e ainda uma interlocução promovendo uma interação.
            Conforme Kerbrat-Orecchioni (2006) o contexto, também chamado como situação comunicativa, é a mescla dos seguintes elementos: o quadro espacial e o quadro temporal, o objetivo global da interação, e seus participantes, tendo seus papeis interlocutivos assinalados, assim “as conversações são ‘construções coletivas’ feitas de palavras, mas também de silêncios e de entonações, de gestos, de mímicas e de posturas” (Kerbrat-Orecchioni, 2006, p. 36), em que esses mecanismos de construção dialógica são conceitos postulados pela autora que os apresenta como material verbal, paraverbal e não verbal.
            Para Fiorin (2006, p. 169) “a Pragmática concebe que as chamadas palavras do discurso [...], cuja função varia de acordo com o contexto linguístico em que se acham colocadas; significam porque há uma instrução sobre a maneira de interpretá-las.
            Nesse sentido iremos analisar os fragmentos do documentário interagindo com essas teorias a fim de evidenciar o contexto e o discurso presente nesse gênero.


            Fora assistido o documentário “A invenção da infância” e escolhidos trechos dos enunciados proferidos por um grupo de pessoas. Divididos esses trechos em 3 grupos, a saber: grupo 1, “as mães”; grupo 2, “as crianças A”; grupo 3, “as crianças B”.

Grupo 1: As mães
Linha
Mãe
Tempo
Enunciado
01
M1
03:38
Sou mãe de nove, aliás dez. Dois morreru.
02
M2
03:55
Dois eu tenho vivo i quatro morreu.
03
M3
04:05
Morreru assim de repente, sei lá!
04
M4
04:15
Morreu ... ((pensativa), morreu de morte ((rindo))
05
M5
04:31
Tive 28 ... 28 filho, tem 7 vivo ... oliás tenho 6... é são 6 filho

Grupo 2: As crianças A
Linha
Criança
Tempo
Enunciado
01
CA1
06:59
Ah, eu faço um monte de coisa, ando de bicicleta, ando de patins.
02
CA2
07:47
Jogar videogame... jogar bola
03
CA3
09:04
Às vezes eu durmo direto que tô muito cansada
04
CA4
09:15
Carrego um pouco assim esse monte de coisa que a gente tem pra fazer
05
CA5
14:34
Eu faço balé e faço natação (...) e vôlei na escola

Grupo 3: As crianças B
Linha
Criança
Tempo
Enunciado
01
CB1
07:12
Brinco mais os amigos, de bola, de revólver, de um bucado de brincadeira mais.
02
CB2
07:42
Matá passarinho, ( )
03
CB3
08:43
Eu acho que não trabalho porque não tem jeito de não trabalhá memo.
04
CB4
09:19
Trabalho aqui pra quando eu cresce eu ajudá o meu pai a trabaiá.
05
CB5
09:51
O trabalho aqui é bão ... trabalha na sombra ... não toma sol, porisso que é bão.


Grupo 1: As mães

            Contexto: Bahia. As mães aparecem no início do documentário, após uma pequena introdução sobre descobertas científicas de características sociais e históricas de maneira progressiva até chegarem ao Brasil. Desse modo o documentário conduz o receptor a partir do Renascimento, período de grandes descobertas, passando por Colombo, descobrir da América e finalmente a Cabral que descobriu o Brasil.
            Em seguida podemos observar diversas cenas de vidas urbanas e rurais com suas comunidades e divididas por realidades distintas. Dá ênfase as cenas com crianças desprotegidas e vulneráveis, em um ambiente árido, ensolarado, com poucos recursos.
            A primeira cena de fala ocorre pela M1, antes disso há um grupo de crianças, carregando um pequeno caixão, sobre uma rua larga de areia, enquanto um porco atravessa a mesma rua. M1 está à janela, de madeira, sustentando seu filho bebê, mais três outras crianças ao seu lado e enuncia: “Sou mãe de nove, aliás dez. Dois morreru”. A segunda cena de fala acontece quando M2, está sentada ao lado da porta de sua casa e há uma pequena criança bocejando, enuncia: “Dois eu tenho vivo i quatro morreu”. Os demais enunciados, M3: “Morreru assim de repente, sei lá!”, M4: “Morreu ... ((pensativa), morreu de morte ((rindo))”, M5: “Tive 28 ... 28 filho, tem 7 vivo ... oliás tenho 6... é são 6 filho”, apresentam um contexto comum, ou seja, todas as mães perderam seus filhos por doenças, fome, necessidades. Estão todas em situações de vulnerabilidade social, privadas de necessitadas de básicas.
            Objetivo: O objetivo inicial do documentário é situar ao receptor qual momento está sendo retrato, as condições dos indivíduos, a localização geográfica e as práticas dessa comunidade, assim como as dificuldades e as consequências sofridas por essas pessoas nesse momento.
           Participantes: Não há uma conversão face a face, pois as mães vão falando e sendo registradas pela câmera, mas é possível inferir que são perguntadas a elas, embora as perguntas não são mostradas. São características comuns dessas mães: a mortalidade infantil de seus filhos, o trabalho para a manutenção da família, a pobreza generalizada, a escassez de recursos e a quantidade de filhos que se assomam.

Grupo 2: As crianças A

            Contexto: São Paulo. O lugar desse grupo de crianças é fechado, ou seja, estão no parquinho de um condomínio residencial, em uma cadeira ao lado da piscina, em uma sala, sobre um sofá em que pela janela é possível observar que esse ambiente é um prédio, pois se vê uma tela de proteção e casas abaixo.
            As atividades dessas crianças são descritas pela CA1: “Ah, eu faço um monte de coisa, ando de bicicleta, ando de patins” e pela CA2: “Jogar videogame... jogar bola”, como atividades comuns de crianças.
      Objetivo: Intenciona-se retratar a vida da criança, seus afazeres e suas responsabilidades, de modo que podemos inferir que é, aparentemente, diferente da vida de um adulto. Em suas falas há descrições reais sobre comportamentos, do que gostam e também o que desgostam.
            Participantes: As crianças são mostradas fazendo aulas de balé, falando com a câmera no sofá ou em uma cadeira ao lado da piscina. Refletem um discurso de obrigações impostas, durante o dia, que as deixam exauridas como: CA3: “Às vezes eu durmo direto que tô muito cansada”, CA4: “Carrego um pouco assim esse monte de coisa que a gente tem pra fazer” e CA5: “Eu faço balé e faço natação (...) e vôlei na escola”.

Grupo 3: As crianças B

     Contexto: Bahia. O lugar desse grupo de crianças é aberto, ou seja, suas atividades se dão ao ar livre sem a proteção física de uma casa por exemplo. CB1 enuncia: “Brinco mais os amigos, de bola, de revólver, de um bucado de brincadeira mais”, e “Matá passarinho, ( )” conforme confessa CB2. Esse grupo brinca à rua, descalços, descamisados e com brinquedos feitos por eles próprios de acordo com a sua imaginação.
     Objetivo: É notório observar a rotina similar que a criança suporta como o adulto de seu meio, embora apresentem desejo de brincar, são levadas a buscarem melhores condições financeiras exigindo esforços e sacrifícios ao trabalho manual e pesado. É possível inferir um grau alto de responsabilidade das crianças para com a suas famílias, como enuncia CB4: “Trabalho aqui pra quando eu cresce eu ajudá o meu pai a trabaiá”, CB3 já se conforma com a situação em que se encontra: “Eu acho que não trabalho porque não tem jeito de não trabalhá memo”.
      Participantes: As crianças enunciam diante da câmera enquanto outras são mostradas sentadas ao chão, quebrando pedras, em um trabalho de grande esforço, descalças, sem proteção contra o sol escaldante, descamisadas. Em outra cena, CB5 revela o motivo de gostar de trabalhar alí, que parece ser outro lugar: “O trabalho aqui é bão ... trabalha na sombra ... não toma sol, porisso que é bão”. Em seguida descrevem o pouco que ganham, para que estão trabalhando dessa maneira, e o que gostariam.
  

            Os enunciados aqui estudados pertencem a um campo semântico que podemos mencionar como “infância”, é dizer, apresentam características como comportamentos, ações, desejos, aspectos físicos, idades, mesmo o grupo 1, que parece bem distanciado em relação as crianças, pode-se inferir que também se enquadra nesse campo, por serem estas vítimas da mortalidade e tristeza de suas mães.
            Por meio das teorias de Fiorin (2005) e de Kerbrat-Orecchioni (2006) podemos reconhecer a necessidade dos marcadores linguísticos que auxiliam na produção de sentido, assim como a noção de interação e de conversação. Também a necessidade do contexto: o lugar, o objetivo e os participantes, para a atribuição de sentido e a eficácia na contextualização dos enunciados.
            Portanto é possível conferir ao estudo um caráter reflexivo, a partir do corpus analisado, podendo levar ao leitor a reunir a noção de contexto pertinente para cada um dos grupos, e ser possível uma avaliação.
Ao final do documentário a frase: “Ser criança não significa ter infância”, remete a uma ideia de privação de um tempo determinado por obrigação ou comprometimento, enquanto umas crianças mais que outras, mas todas sendo impedidas de ter infância, renegadas a comportamentos adultos por falhas ou por ordens. 

           
Referências

FIORIN, J. L. A linguagem em uso. In: ______ (Org.). Introdução à linguística I: objetos teóricos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Análise da conversação: Princípios e métodos. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. Tradução de Carlos Piovezani Filho.

SULZBACH, Liliana. A Invenção da Infância. 2000. In Portacurtas. Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2018.