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domingo, 22 de setembro de 2019

Poesia, política e comportamento na década de 70

Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera

O vacilo na formação das letras conjuntas e lineares formando uma cadeia horizontal de possibilidade semântica está mais propensa à imposição do que à liberdade. “Agora silêncio”, “Primeiro ato da imaginação”. “Uma frase em cada linha”, “Um golpe de exercício”. “Agora é a sua vez”, versos estes, do poema de Ana Cristina Cesar, podem significar o dilema estudantil de ter à frente “uma folha branca e limpa” a sua espera.

O presente texto tentará reunir a relação do contexto histórico da Ditadura Militar, no Brasil, e dos movimentos contraculturais, mundo afora, com os poetas da década de 70, propondo uma leitura sobre como a “geração marginal”, ou a “geração mimeógrafo” dialogaram com as principais questões políticas e culturais de seu tempo.

A efeito de contextualização é importante estabelecer uma questão temporal e política. No Brasil, estamos diante de um cenário repressor e violento, de caráter nacionalista e autoritário, que durou 21 anos, de abril de 1964 a março de 1985. Fora do Brasil acontece, durante esse período, a Guerra do Vietnã, de 1959 a 1975, reflexo de uma disputa estratégica entre os Estados Unidos e a União Soviética, em que buscavam uma hegemonia política, econômica e militar no mundo, a chamada Guerra Fria.

Nesse texto, fazemos um recorte: Poesia, política e comportamento na década de 70, portanto, conforme Moriconi (2016, p. 9), “a década de 70 do século XX no Brasil foi tempo de muita poesia e muita loucura... eram tempos de ditadura militar na política ... tempos de contracultura”, de comportamento questionador em que afrontava “o sistema social, as convenções e intuições estabelecidas”, por meio da literatura, da música, da arte.  Nesse sentido, “foi o bastante para que se caracterizasse todo um surto de produção poética mais ou menos clandestina, que os teóricos classificam ou não de marginal em função de fatores diversos” (MATTOSO, 1981, p. 20) como culturais, comerciais, estéticos ou puramente políticos.

Na poesia, a “geração mimeógrafo” se mostra contrária a tradição, tendo um lugar indefinido, ou seja, à margem, fora dos padrões estabelecidos, na qual há um pensamento de oposição ao regime político e cultural, dessa forma as edições e a divulgação da produção dos poetas são marcadas “pelo caráter artesanal dos livrinhos de poesia, vendidos pelo próprio poeta em portas de cinemas, teatros, bares” (MORICONI, 2016, p. 10-11). Tal comportamento “marginal” é encarado contracultura e apresentam dimensões complementares de natureza literária e comportamental, de forte conotação política.

Desse modo, é possível reconhecer na poesia um diálogo com a música popular brasileira, a brasilidade e a diversidade de referências culturais tencionando a uma simplicidade, rompendo com a estrutura formal e técnica anterior, abordando a vida cotidiana, o coloquialismo, a dicção simples, próxima à oralidade refletindo um desejo anárquico, fora do padrão social estabelecido. Podemos pensar então que a poesia se abre com o mundo prosaico, expressando sentimentos, humor, ironia, na tentativa de uma linguagem comunicativa, acessível e jovem, “na proposta de fusão entre poesia e vida, traço típico da geração 70” (MORICONI, 2016, p. 10).

Para evidenciar algumas características dessa geração, escolheu-se os poemas a seguir a efeito de demonstração sucinta e limitada do que representou o diálogo dos poetas da década de 70 com as principais questões políticas e culturais de seu tempo.

Nos versos de Ana Cristina Cesar, podemos perceber o deslocamento, gesto de tirar “versos” de um lugar contextualizado e colocá-lo em outro lugar, na poesia. A fala de um mundo prosaico, cotidiano, recortado; sem antes, nem depois, cria o corpo do poema, a sua materialidade. Tal estilo pode ser observado em uma situação comunicativa vulgar, como no poema “Conversa de senhoras”, os versos são fragmentos soltos de um diálogo que apresentados ao leitor mais parece confusão que relação: “Tem alguém na casa/ Você acha que ele aguenta?/ Sr. Ternura está batendo/ Eu não estava nem aí”. Para Moriconi (2016, p. 17), o estilo da poeta é “altamente experimental e vanguardista, se compõe da superposição de frases, fragmento de prosa”.

Em “Primeira lição”, podemos perceber o tom explicativo, didático, metodológico, na qual pode constituir uma maneira diferenciada da expressão poética de Ana Cristina Cesar: “Os gêneros de poesia são: lírico, satírico, didático, épico, ligeiro. / O gênero lírico compreende o lirismo. / Lirismo é a tradução de um sentimento subjetivo, sincero e pessoal”.

A conversa, a fala prosaica, a dicção conversacional, pode também estar aliada ao ritmo e a comicidade, aludindo a uma melodia, como observado em “Tiau Roberval (ou: vai nessa maladro)”, de Cacaso, em que o anúncio da morte está vinculado aos fatos do cotidiano, ao coloquialismo oral, recheado por rimas de sonoridades evidentes, mescladas por humor: “Deixou bilhete pra mim?”/ Uma piada engraçada/ uma empada de nada/ uma bicada de gim?/ Uma desgraça pelada?”.

Assim como, Waly Salomão explicita esse ritmo, na marcação textual, no recurso estilístico da repetição da palavra, no sentido enunciativo do poema: “Hoje só quero ritmo./ Ritmo no falado e no escrito./ Ritmo, veio central da mina./ Ritmo, espinha dorsal do corpo e da mente./ Ritmo na espiral da fala e do poema”.

Em “Logias e Analogias”, podemos observar a crítica à saúde pública e a classe dominante, assim como a “mercantilização” de um direito como produto de enriquecimento elitista. São versos irônicos que reverberam o sentido de inconformidade frente à realidade opressora: “No Brasil a medicina vai bem/ mas o doente ainda vai mal. / Qual o segredo profundo/ desta ciência original? / É banal: certamente/ não é o paciente/ que acumula capital”, desse modo, poderíamos inferir que a negligência, por parte do estado, e também por seus agentes sociais, pode se materializar em uma forma de violência, assim a poesia expõe, denuncia: “Não há na violência/ que a linguagem imita/ algo da violência/ propriamente dita?”.

Um exemplo do diálogo entre poesia e música é o poema “Go back” (1971), de Torquato Neto, musicalizado pelos Titãs, em que os versos, tornaram-se uma espécie de refrão para a música: “Só quero saber/ do que pode dar certo/ não tenho tempo a perder”. Conforme, Moriconi (2016, p. 12) muitos poetas dessa geração também foram “letrista de música... Particularmente Torquato e Waly”.

Procurou-se nesse texto evidenciar a relação de alguns poetas da década de 70 com as principais questões políticas e culturais de seu tempo, apresentando aspectos gerais da poesia “marginal”, principalmente com a questão do cotidiano, a conversa privada, a crítica política, o humor e as letras de músicas.   

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