Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera
O vacilo na formação das letras
conjuntas e lineares formando uma cadeia horizontal de possibilidade semântica está
mais propensa à imposição do que à liberdade. “Agora silêncio”, “Primeiro ato
da imaginação”. “Uma frase em cada linha”, “Um golpe de exercício”. “Agora é a
sua vez”, versos estes, do poema de Ana Cristina Cesar, podem significar o
dilema estudantil de ter à frente “uma folha branca e limpa” a sua espera.
O presente texto
tentará reunir a relação do contexto histórico da Ditadura Militar, no Brasil,
e dos movimentos contraculturais, mundo afora, com
os poetas da década de 70, propondo uma leitura sobre como a “geração
marginal”, ou a “geração mimeógrafo” dialogaram com as principais questões
políticas e culturais de seu tempo.
A efeito de
contextualização é importante estabelecer uma questão temporal e política. No
Brasil, estamos diante de um cenário repressor e violento, de caráter
nacionalista e autoritário, que durou 21 anos, de abril de 1964 a março de
1985. Fora do Brasil acontece, durante esse período, a Guerra do Vietnã, de
1959 a 1975, reflexo de uma disputa estratégica entre os Estados Unidos e a
União Soviética, em que buscavam uma hegemonia política, econômica e militar no
mundo, a chamada Guerra Fria.
Nesse texto,
fazemos um recorte: Poesia, política e comportamento na década de 70, portanto,
conforme Moriconi (2016, p. 9), “a década de 70 do século XX no Brasil foi
tempo de muita poesia e muita loucura... eram tempos de ditadura militar na
política ... tempos de contracultura”, de comportamento questionador em que
afrontava “o sistema social, as convenções e intuições estabelecidas”, por meio
da literatura, da música, da arte. Nesse
sentido, “foi o bastante para que se caracterizasse todo um surto de produção
poética mais ou menos clandestina, que os teóricos classificam ou não de
marginal em função de fatores diversos” (MATTOSO, 1981, p. 20) como culturais,
comerciais, estéticos ou puramente políticos.
Na poesia, a
“geração mimeógrafo” se mostra contrária a tradição, tendo um lugar indefinido,
ou seja, à margem, fora dos padrões estabelecidos, na qual há um pensamento de
oposição ao regime político e cultural, dessa forma as edições e a divulgação
da produção dos poetas são marcadas “pelo caráter artesanal dos livrinhos de
poesia, vendidos pelo próprio poeta em portas de cinemas, teatros, bares”
(MORICONI, 2016, p. 10-11). Tal comportamento “marginal” é encarado
contracultura e apresentam dimensões complementares de natureza literária e
comportamental, de forte conotação política.
Desse modo, é
possível reconhecer na poesia um diálogo com a música popular brasileira, a
brasilidade e a diversidade de referências culturais tencionando a uma
simplicidade, rompendo com a estrutura formal e técnica anterior, abordando a
vida cotidiana, o coloquialismo, a dicção simples, próxima à oralidade
refletindo um desejo anárquico, fora do padrão social estabelecido. Podemos
pensar então que a poesia se abre com o mundo prosaico, expressando
sentimentos, humor, ironia, na tentativa de uma linguagem comunicativa,
acessível e jovem, “na proposta de fusão entre poesia e vida, traço típico da
geração 70” (MORICONI, 2016, p. 10).
Para evidenciar
algumas características dessa geração, escolheu-se os poemas a seguir a efeito
de demonstração sucinta e limitada do que representou o diálogo dos poetas da
década de 70 com as principais questões políticas e culturais de seu tempo.
Nos versos de Ana
Cristina Cesar, podemos perceber o deslocamento, gesto de tirar “versos” de um
lugar contextualizado e colocá-lo em outro lugar, na poesia. A fala de um mundo
prosaico, cotidiano, recortado; sem antes, nem depois, cria o corpo do poema, a
sua materialidade. Tal estilo pode ser observado em uma situação comunicativa vulgar,
como no poema “Conversa de senhoras”, os versos são fragmentos soltos de um
diálogo que apresentados ao leitor mais parece confusão que relação: “Tem
alguém na casa/ Você acha que ele aguenta?/ Sr. Ternura está batendo/ Eu não
estava nem aí”. Para Moriconi (2016, p. 17), o estilo da poeta é “altamente
experimental e vanguardista, se compõe da superposição de frases, fragmento de
prosa”.
Em “Primeira
lição”, podemos perceber o tom explicativo, didático, metodológico, na qual
pode constituir uma maneira diferenciada da expressão poética de Ana Cristina
Cesar: “Os gêneros de poesia são: lírico, satírico, didático, épico, ligeiro. /
O gênero lírico compreende o lirismo. / Lirismo é a tradução de um sentimento
subjetivo, sincero e pessoal”.
A conversa, a fala
prosaica, a dicção conversacional, pode também estar aliada ao ritmo e a
comicidade, aludindo a uma melodia, como observado em “Tiau Roberval (ou: vai
nessa maladro)”, de Cacaso, em que o anúncio da morte está vinculado aos fatos
do cotidiano, ao coloquialismo oral, recheado por rimas de sonoridades
evidentes, mescladas por humor: “Deixou bilhete pra mim?”/ Uma piada engraçada/
uma empada de nada/ uma bicada de gim?/ Uma desgraça pelada?”.
Assim como, Waly
Salomão explicita esse ritmo, na marcação textual, no recurso estilístico da
repetição da palavra, no sentido enunciativo do poema: “Hoje só quero ritmo./
Ritmo no falado e no escrito./ Ritmo, veio central da mina./ Ritmo, espinha
dorsal do corpo e da mente./ Ritmo na espiral da fala e do poema”.
Em “Logias e Analogias”, podemos
observar a crítica à saúde pública e a classe dominante, assim como a “mercantilização”
de um direito como produto de enriquecimento elitista. São versos irônicos que
reverberam o sentido de inconformidade frente à realidade opressora: “No Brasil
a medicina vai bem/ mas o doente ainda vai mal. / Qual o segredo profundo/ desta
ciência original? / É banal: certamente/ não é o paciente/ que acumula capital”,
desse modo, poderíamos inferir que a negligência, por parte do estado, e também
por seus agentes sociais, pode se materializar em uma forma de violência, assim
a poesia expõe, denuncia: “Não há na violência/ que a linguagem imita/ algo da
violência/ propriamente dita?”.
Um exemplo do diálogo entre poesia e
música é o poema “Go back” (1971), de Torquato Neto, musicalizado pelos Titãs,
em que os versos, tornaram-se uma espécie de refrão para a música: “Só quero
saber/ do que pode dar certo/ não tenho tempo a perder”. Conforme, Moriconi
(2016, p. 12) muitos poetas dessa geração também foram “letrista de música...
Particularmente Torquato e Waly”.
Procurou-se nesse
texto evidenciar a relação de alguns poetas da década de 70 com as principais
questões políticas e culturais de seu tempo, apresentando aspectos gerais da
poesia “marginal”, principalmente com a questão do cotidiano, a conversa
privada, a crítica política, o humor e as letras de músicas.
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