Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.
Uma tumultuada, uma indecifrável jornada para dentro
de mim. Da linguagem. Da minha linguagem. Da vida
(Chacal)
Para a poesia
concreta a palavra não estava para a subjetividade, assim como ela também não
contemplava “às seduções superficiais de qualquer torneio vocabular” (CAMPOS,
1957, p. 150). A poesia concreta é “contra a poesia de expressão, subjetiva”,
desse modo, é “uma poesia de criação, objetiva. concreta, substantiva”
(PIGNATARI, 1956, p. 68).
O presente texto tem
por objetivo mostrar como os poetas “marginais” através “de uma atitude
subversiva à margem da cultura. De rasgos lúdicos e performáticos em meio a uma
ditadura militar” (POMPERMAIER, 2016, s/p), realizaram um retorno ao eu, à
subjetividade, à vida em seus poemas, opondo-se, dessa forma, à condenação da
poesia expressiva pelos poetas concretos.
A reconsideração da
subjetividade na poesia (dita) marginal não se deu a partir dos anos 1970, mas
sim por meio de um novo movimento cultural anterior chamado tropicalismo,
segundo Mattoso (1981, p. 20), “teria sido [ele] o marco inicial”. Ainda
conforme o autor, “historicamente, não se ouve falar de poesia marginal antes
do tropicalismo, no final da década de 60” (MATTOSO, 1981, p. 19). Assim como
assinala Gomes (2012, p. 21), “é a partir da Tropicália que o termo
"marginal" caracteriza uma certa produção artística e poética, numa
tentativa de trabalhar a noção de contracultura, por esta ter uma estética dita
pouco literária, num sentido convencional, por apostar num experimentalismo de
vanguarda”. Desse modo, a contracultura foi
"um movimento social que procurou romper com a modernização da
sociedade brasileira posta em prática de forma autoritária pela ditadura
militar, estabelecida no país com o golpe de 1964" (GOMES, 2012, p. 25 apud COELHO, 2006, p.41).
Na poesia, a
“geração mimeógrafo”, ou “geração 70”, ou ainda “geração marginal”, denominações
dadas aos “poetas que ficaram conhecidos como integrantes dessa geração”
(MORICONI, 2016, p. 9), se mostra contrária a tradição, tendo um lugar
indefinido, ou seja, à margem, fora dos padrões estabelecidos, na qual há um
pensamento de oposição ao regime político e cultural, dessa forma, as edições e
a divulgação da produção dos poetas são marcadas “pelo caráter artesanal dos
livrinhos de poesia, vendidos pelo próprio poeta em portas de cinemas, teatros,
bares” (MORICONI, 2016, p. 10-11).
Para evidenciar
algumas características dessa geração, escolheu-se os poemas da antologia
“Destino: poesia” organizado por Italo Moriconi publicado em 2016. Os poemas
selecionados para este texto são: “Conversa de senhoras” de Ana Cristina Cesar,
“Reflexo condicionado” de Cacaso, “duas folhas na sandália” de Paulo Leminski, “Cogito”
de Torquato Neto e “Confeitaria Marseillaise – Doces e Rocamboles” de Waly
Salomão, a fim de demonstração sucinta e limitada de como os poetas daquela
geração realizaram um retorno ao eu, à subjetividade, à vida em seus poemas.
Nos versos de Ana
Cristina Cesar, podemos perceber o deslocamento, gesto de “tirar versos” de um
lugar contextualizado e colocá-los em outro lugar, na poesia. A fala de um
mundo prosaico, cotidiano, recortado; sem antes, nem depois, cria o corpo do
poema, a sua materialidade. Tal estilo pode ser observado em uma situação
comunicativa vulgar, como no poema “Conversa de senhoras”, os versos são
fragmentos soltos de um diálogo que apresentados ao leitor mais parece confusão
que relação: “Tem alguém na casa/ Você acha que ele aguenta?/ Sr. Ternura está
batendo/ Eu não estava nem aí”. Para Moriconi (2016, p. 17), o estilo da poeta
é “altamente experimental e vanguardista, se compõe da superposição de frases,
fragmento de prosa”.
Em “Reflexo
condicionado”, o eu poético propõe uma reflexão ao leitor, para que ele reaja à
leitura dos versos a modo que os estímulos externos sejam recuperados a fim de
contribuição para a efetiva atribuição de sentido: “pense rápido:/ Produto
Interno Bruto/ ou/ brutal produto interno/?”. O leitor é convidado a usar a sua
subjetividade, seu senso crítico e o seu conhecimento de mundo para levantar
inferências acerca do tema. Para Micheletti (2017, p. 154) “Nesse poema, o único verbo
encontra-se no primeiro verso – pense rápido: – no qual o enunciador dirige-se
ao enunciatário no modo imperativo; joga com o conhecido PIB – Produto Interno
Bruto – para questionar uma postura aparentemente econômica ao levantar as
consequências sociais desse “reflexo condicionado” a que estão aprisionados os
economistas com suas regras econômicas. O enunciador procede a uma inversão dos
termos e a uma ligeira mudança no adjetivo Bruto => brutal, de certo modo
lançando ao leitor uma espécie de desafio que se conclui no ponto de
interrogação, único elemento do verso final.
Em “duas folhas na
sandália”, Paulo Leminski, utiliza a forma de poesia japonesa, composta de três
versos, tendo como tema a estação do ano outono, para criar seu próprio haicai: “duas folhas na sandália/ o
outono/ também quer andar”. É possível observar as características desse modelo
oriental na composição do poema, como a concisão dos versos, a captura de um
momento da natureza, e a passagem do tempo, elementos em conjunto que compõem a
expressividade poética.
Em “Cogito” de
Torquato Neto, é possível observar o eu poético praticar uma espécie de
autoreferenciação compondo uma expressão poética subjetiva, alinhada a uma
possível leitura comparada ao texto bíblico do livro de Êxodo, capítulo 3,
versículo 14: “Disse Deus a Moisés: "Eu Sou o que Sou. É isto que você
dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês", com os primeiros versos
das quatro primeiras estrofes do poema: “eu sou como eu sou”. Para Rodrigues
(2019, s/p), “a individualidade do poeta acentua-se por meio da anáfora do
verso que inicia as quatro estrofes do poema, estrofes essas que buscam definir
“como” o autor se retrata: nomeadamente, em arranjos a opor concatenações
comuns de palavras, retorcidas para produzir um potente efeito desconcertante,
vale dizer, o diferencial que sobeja ao final de sua leitura”.
Waly Salomão, em seu
poema “Confeitaria Marseillaise – Doces e Rocamboles”, em uma leitura política
e contextualizada na década de 1970, irá referenciar os abusos e a violência
urbana sofrida pelo eu poético em um regime político autoritário, armado,
bélico: “Experimentados no manejo de armas de fogo 3 filhoes infantes da
burguesia empunham arma / 1. Empunha revólver / 2. Empunham espingardas”.
Pode-se inferir o comportamento preconceituoso e violento de uma possível
polícia armada que assalta o eu poético perante a exigência de uma revista
imposta: “sonhei com um batalhão policial me exigindo indentificação/
revistaram a maloca do fundo do meu bolso / mostrei babilaques / me entreguei
descontento pero calmamente / nada foi encontrado que incriminasse o detido no
boletim de averiguações”. Mais do que uma poesia de denúncia dos abusos do
estado, é um poema de vulnerável, pois declara a incapacidade dos marginalizados
da sociedade, dos “vadios”, dos “marginais”, de reagirem perante a tal constrangimento
e autoritarismo, ou seja, estão todos esses de “mãos atadas” revelando a
impossibilidade do indivíduo perante a essa violência institucionalizada.
Por fim, tentou-se
demonstrar por meio deste texto como os poetas da “geração marginal” realizaram
um retorno ao eu, à subjetividade, à vida em seus poemas, opondo-se, dessa
forma, à condenação da poesia expressiva pelos poetas concretos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário