Pesquisar este blog

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

As músicas me trouxeram aqui



 
As horas pintavam o passado cada vez mais veloz, a janela aberta balançava a cortina que dançava ao som de Je reste la même de Annabelle Mouloudji. Era tarde de uma noite fria, mesmo assim ela deixava o vento noturno roçar em sua pele eriçada. Desliguei a luz da sala e continuei ali, através da minha janela, observando ela se despir, imaginei-a com um jeans e um salto alto, estava com uma jaqueta preta que ao tirar reluzia, à luz da lua, uma saboneteira alva. Imaginei-a dançar por aquela sala enquanto se mantinha elegante e sedutora.

Liguei o abajur e se fez uma luz indireta, mantinha a esperança de que ela me notasse, que acenasse para o apartamento da frente. Estava pronto para retribuir com um sorriso e um gentil movimento de sim com a cabeça. Continuei ali, e ela continuou a dançar, estava feliz, parecia feliz. Eu costumava ser assim, calado sem coragem, não me atrevia tampouco a acender a luz, pensei que ela poderia se aborrecer ou encerrar aquele espetáculo tão prazeroso e bonito. Eu a queria e a observava.

Ela mudou de música, a noite estava tão silenciosa, ou eu imaginativo, que escutava La quiero a morir de Shakira, era aquela versão que ela canta em francês. “Que mulher fantástica”, pensei. A um piscar lento ela desapareceu, a janela continuou aberta, a morena de cabelos longos ausentou-se, meu rosto se entristeceu, minha consciência pesou, por pensar que, talvez, ela tivesse percebido aquele atrevido observador.

 Eu me lamentava, mirando apenas o meu assoalho gasto de madeira quando ela ressurgiu, ainda mais feminina. Continuava a dançar naquela sua sala escura, iluminada apenas pela luz daquela lua cheia que me ajudava a ser o perfeito investigador, que percebia tudo, cada passo, cada volta, cada sorriso.

Ela parou em frente à janela, começou a observar a rua deserta e com um simples piscar ela olhou na minha direção, eu ali, estático, acenou, eu não acreditei, acenou novamente, olhei ridiculamente para trás, e sorri, retribuí o aceno. Ela desapareceu da janela. Eu conscientemente pensei que ela chamaria a polícia, mas continuei ali. Ela voltou, acendeu a luz da sala e me convenci que, sim, ela também me observava, sorriu e mandou um beijo com as mãos, apagou a luz, fechou a janela, cerrou a cortina e fiquei sentado até amanhecer, imaginando se tudo foi um sonho maluco. Entendi que o que houve foi apenas um episódio das músicas que me trouxeram aqui.

domingo, 3 de novembro de 2013

O importante é ser



Ele chegou suado, por correr daquela chuva torrencial. Seus sapatos estavam molhados, grudado ao corpo, o uniforme encharcado parecia mais uma segunda pele, mas nada parecia embaçar aquele seu sorriso. Tirou as botinas, suas meias enlameadas e entrou em casa. Tomou banho, ajeitou o cabelo, vestiu seu jeans, uma camiseta de manga curta vermelha e se abrigou abaixo do guarda-chuva, para sair novamente à rua.
Naquela noite ele estava atento a toda a iluminação pública, as janelas do bairro, ora fechadas com cortinas enfeitadas por fitas e enfeites de pinheiro e azevinho, ora abertas com o peitoril exibindo presépios e pequenas velas de natal, casinhas iluminadas. Os pisca-piscas não faltavam, era de sua responsabilidade dar o charme para aquela época do ano. Aquilo o enchia de alegria, voltou a ser menino, era natal. Tocou a campanhia e aguardou, foi recebido com um grande sorriso por uma senhora de cabelos grisalhos curtos, entrou pedindo licença.
- Estou feliz por ter aceito o meu convite, Emanuel.
- Estou feliz por ter me convidado, Clarice.
A pequena casa estava iluminada por velas de mesa. Uma árvore de natal de um pouco mais de um metro iluminava a sala dando um ar de achonchego e paz. Clarice ouvia Vivaldi em uma vitrola de madeira.
- Sente-se, fique à vontade, vou buscar uma taça de vinho para você. Enquanto isso você poderia colocar esse disco que está sobre a mesa? Adoro as músicas dele, é uma noite para desfrutarmos suas canções.
- Claro!
Ele pegou o vinil das mais lindas canções de natal, ergueu a agulha da vitrola, trocou o disco, e começou alí jingle bells.
- Espero que o peru esteja saboroso, - ela disse sorrindo. Testei uma nova receita com ervas frescas, acredito que você vai gostar bastante.
Sentaram-se a mesa e comeram. Depois do cafezinho, ele retirou os pratos, colocou-os sobre a pia e se juntou a ela para voltarem a conversar.
- Como foi o seu dia? Ainda tralhando no jardim da Carmen?
- Terminei hoje, ficou muito bonito, sai de lá correndo e fui surpreendido no caminho por aquela chuva, mas nada que um banho quente e esse convite não me fizesse feliz novamente.
Ela sorriu timidamente e continuou: - É evidente o seu cuidado e o seu gosto por aquilo que você faz tão bem, com a sua ajuda eu consigo ter um jardim organizado e uma horta sempre bem cuidada. Mas me conte, onde está a sua família?
Ele ficou meio sem jeito com o elogio e surpreso por uma pergunta tão pessoal, mas estava tão à vontade e respondeu tranquilamente: - Desconheço onde vivem, na verdade não sei se tenho uma família, como todo mundo. Nasci em um orfanato e aprendi o ofício de jardineiro lá, gosto de cuidar da terra, de fazê-la produzir, isso me enche de alegria, trabalhar para mim é uma motivação. E você, Clarice, tem algum motivo por viver aqui, sozinha? Onde está a sua família?
Clarice se supreendeu com a pergunta, ergueu suas sobrancelhas, respirou e após uma pequena pausa respondeu: - Ah, jovem! Às vezes isso acontece, as coisas mudam, tudo que você acredita se vai e você tem que estar preparado para entender que nada é para sempre e o que o faz continuar é a sua vontade de viver e a sensação de produzir, de se sentir vivo. Eu vivo sozinha, mas não me sinto solitária, pois encontrei aqui um refúgio, um recanto de paz. Admiro você pela sua simplicidade e a maneira como você conduz a sua vida, você vai perceber que isso é fudamental. Com o tempo você vai perceber o essencial para estar feliz não é a sua posição social, seus bens materiais, as reuniões sociais, afinal você encontra a felicidade diariamente, se tiver tempo para percebê-la. Estar feliz é ter autoconhecimento, é saber o que te motiva, você será completo quando se conhecer, quando o importante é ser e não ter.
Ele a ouvia atentamente e quando deu meia noite, ela pediu licença, se levantou, pegou um embrulho que estava embaixo da árvore e disse:
- Emanuel, esse é seu presente!
Ele, emocionado, sorriu, a abraçou e agradeceu: - Muito obrigado Clarice, sinto em não ter nada a oferecer.
Ela sorriu novamente, o olhou nos olhos e disse: - Querido, você me presenteia sempre, o seu sorriso, a sua educação, seu cuidado e a sua amizade, são presentes cotidianos, é a essência do ser, se lembra?
Os dois sorriram juntos e aquela noite de natal foi espetacular para ambos que fortaleceram os laços de amizade em uma noite muito propícia.