Neste trabalho, examinaremos o contexto e o enunciado de pessoas, especificamente mães
e crianças, presentes no documentário “A Invenção da Infância”. Lançado em 2000
e produzido por Liliana Sulzbach e Mônica Schmiedt, no Rio Grande do Sul, com
duração de 26 minutos, o documentário reflete sobre o que é ser criança e a
relação com a infância.
Para
isso usaremos o conceito da Pragmática, conforme Fiorin (2015, p. 166) “é a
ciência do uso linguístico, estuda as condições que governam a utilização da
linguagem, a prática linguística”, assim como ela “deve explicar como os
falantes são capazes de entender não literalmente uma dada expressão, [...]
devem mostrar como se fazem inferências necessárias para chegar ao sentido dos
enunciados”. (FIORIN, 2015, p. 168). Também, para este breve estudo, usaremos
os princípios e métodos de Catherine Kerbrat-Orecchioni, que conceitualiza a
análise das conversações, o contexto e o material verbal, paraverbal e não
verbal.
Por
fim, tentaremos entender os processos pragmáticos que permeiam os discursos
analisados e seus contextos a fim de aplicar ao material analisado os procedimentos
teóricos propostos para a atribuição de sentido.
As reflexões e análises deste trabalho são fundamentadas
a partir da linguagem em uso defendidas por Fiorin (2005) e pelos conceitos da
análise da conversação prescritos por Kerbrat-Orecchioni (2006).
Conforme menciona Fiorin (2005, p. 166) “a Pragmática é a
ciência do uso linguístico, estuda as condições que governam a utilização da
linguagem, a prática linguística”, usaremos esse referencial teórico para observar,
em alguns trechos do documentário, a linguagem em uso. Usaremos também a
vocação comunicativa da linguagem verbal, o que seria conforme os postulados de
Kerbrat-Orecchioni (2006) a efetividade do exercício da fala, que implica
normalmente uma alocução e ainda uma interlocução promovendo uma interação.
Conforme Kerbrat-Orecchioni (2006) o contexto, também
chamado como situação comunicativa, é a mescla dos seguintes elementos: o
quadro espacial e o quadro temporal, o objetivo global da interação, e seus
participantes, tendo seus papeis interlocutivos assinalados, assim “as
conversações são ‘construções coletivas’ feitas de palavras, mas também de
silêncios e de entonações, de gestos, de mímicas e de posturas”
(Kerbrat-Orecchioni, 2006, p. 36), em que esses mecanismos de construção
dialógica são conceitos postulados pela autora que os apresenta como material
verbal, paraverbal e não verbal.
Para Fiorin (2006, p. 169) “a Pragmática concebe que as
chamadas palavras do discurso [...], cuja função varia de acordo com o contexto
linguístico em que se acham colocadas; significam porque há uma instrução sobre
a maneira de interpretá-las.
Nesse sentido iremos analisar os fragmentos do
documentário interagindo com essas teorias a fim de evidenciar o contexto e o
discurso presente nesse gênero.
Fora assistido o documentário “A invenção da infância” e
escolhidos trechos dos enunciados proferidos por um grupo de pessoas. Divididos
esses trechos em 3 grupos, a saber: grupo 1, “as mães”; grupo 2, “as crianças
A”; grupo 3, “as crianças B”.
Grupo 1: As mães
Linha
|
Mãe
|
Tempo
|
Enunciado
|
01
|
M1
|
03:38
|
Sou mãe de nove,
aliás dez. Dois morreru.
|
02
|
M2
|
03:55
|
Dois eu tenho vivo i
quatro morreu.
|
03
|
M3
|
04:05
|
Morreru assim de
repente, sei lá!
|
04
|
M4
|
04:15
|
Morreu ...
((pensativa), morreu de morte ((rindo))
|
05
|
M5
|
04:31
|
Tive 28 ... 28 filho,
tem 7 vivo ... oliás tenho 6... é são 6 filho
|
Grupo 2: As crianças A
Linha
|
Criança
|
Tempo
|
Enunciado
|
01
|
CA1
|
06:59
|
Ah, eu faço um monte
de coisa, ando de bicicleta, ando de patins.
|
02
|
CA2
|
07:47
|
Jogar videogame...
jogar bola
|
03
|
CA3
|
09:04
|
Às vezes eu durmo
direto que tô muito cansada
|
04
|
CA4
|
09:15
|
Carrego um pouco
assim esse monte de coisa que a gente tem pra fazer
|
05
|
CA5
|
14:34
|
Eu faço balé e faço
natação (...) e vôlei na escola
|
Grupo 3: As crianças B
Linha
|
Criança
|
Tempo
|
Enunciado
|
01
|
CB1
|
07:12
|
Brinco mais os
amigos, de bola, de revólver, de um bucado de brincadeira mais.
|
02
|
CB2
|
07:42
|
Matá passarinho, ( )
|
03
|
CB3
|
08:43
|
Eu acho que não
trabalho porque não tem jeito de não trabalhá memo.
|
04
|
CB4
|
09:19
|
Trabalho aqui pra
quando eu cresce eu ajudá o meu pai a trabaiá.
|
05
|
CB5
|
09:51
|
O trabalho aqui é bão
... trabalha na sombra ... não toma sol, porisso que é bão.
|
Grupo 1: As mães
Contexto: Bahia. As mães aparecem no início do
documentário, após uma pequena introdução sobre descobertas científicas de
características sociais e históricas de maneira progressiva até chegarem ao
Brasil. Desse modo o documentário conduz o receptor a partir do Renascimento,
período de grandes descobertas, passando por Colombo, descobrir da América e finalmente
a Cabral que descobriu o Brasil.
Em
seguida podemos observar diversas cenas de vidas urbanas e rurais com suas
comunidades e divididas por realidades distintas. Dá ênfase as cenas com
crianças desprotegidas e vulneráveis, em um ambiente árido, ensolarado, com
poucos recursos.
A
primeira cena de fala ocorre pela M1, antes disso há um grupo de crianças,
carregando um pequeno caixão, sobre uma rua larga de areia, enquanto um porco atravessa
a mesma rua. M1 está à janela, de madeira, sustentando seu filho bebê, mais
três outras crianças ao seu lado e enuncia: “Sou mãe de nove, aliás dez. Dois
morreru”. A segunda cena de fala acontece quando M2, está sentada ao lado da
porta de sua casa e há uma pequena criança bocejando, enuncia: “Dois eu tenho vivo i quatro morreu”. Os demais
enunciados, M3: “Morreru assim de repente, sei lá!”, M4: “Morreu ...
((pensativa), morreu de morte ((rindo))”, M5: “Tive 28 ... 28 filho, tem 7 vivo
... oliás tenho 6... é são 6 filho”, apresentam um contexto comum, ou seja,
todas as mães perderam seus filhos por doenças, fome, necessidades. Estão todas
em situações de vulnerabilidade social, privadas de necessitadas de básicas.
Objetivo: O objetivo inicial do documentário é
situar ao receptor qual momento está sendo retrato, as condições dos
indivíduos, a localização geográfica e as práticas dessa comunidade, assim como
as dificuldades e as consequências sofridas por essas pessoas nesse momento.
Participantes: Não há uma conversão face a face,
pois as mães vão falando e sendo registradas pela câmera, mas é possível inferir
que são perguntadas a elas, embora as perguntas não são mostradas. São
características comuns dessas mães: a mortalidade infantil de seus filhos, o
trabalho para a manutenção da família, a pobreza generalizada, a escassez de
recursos e a quantidade de filhos que se assomam.
Grupo 2: As
crianças A
Contexto: São Paulo. O lugar desse grupo de crianças é
fechado, ou seja, estão no parquinho de um condomínio residencial, em uma
cadeira ao lado da piscina, em uma sala, sobre um sofá em que pela janela é
possível observar que esse ambiente é um prédio, pois se vê uma tela de
proteção e casas abaixo.
As
atividades dessas crianças são descritas pela CA1: “Ah, eu faço um monte de coisa, ando de bicicleta, ando
de patins” e pela CA2: “Jogar videogame... jogar bola”, como atividades comuns
de crianças.
Objetivo: Intenciona-se retratar a vida da
criança, seus afazeres e suas responsabilidades, de modo que podemos inferir
que é, aparentemente, diferente da vida de um adulto. Em suas falas há
descrições reais sobre comportamentos, do que gostam e também o que desgostam.
Participantes: As crianças são mostradas fazendo
aulas de balé, falando com a câmera no sofá ou em uma cadeira ao lado da
piscina. Refletem um discurso de obrigações impostas, durante o dia, que as
deixam exauridas como: CA3: “Às
vezes eu durmo direto que tô muito cansada”, CA4: “Carrego um pouco assim esse
monte de coisa que a gente tem pra fazer” e CA5: “Eu faço balé e faço natação
(...) e vôlei na escola”.
Grupo 3: As
crianças B
Contexto: Bahia. O lugar desse grupo de crianças é
aberto, ou seja, suas atividades se dão ao ar livre sem a proteção física de
uma casa por exemplo. CB1 enuncia:
“Brinco mais os amigos, de bola, de revólver, de um bucado de brincadeira
mais”, e “Matá passarinho, ( )” conforme confessa CB2. Esse grupo brinca à rua,
descalços, descamisados e com brinquedos feitos por eles próprios de acordo com
a sua imaginação.
Objetivo: É notório observar a rotina similar
que a criança suporta como o adulto de seu meio, embora apresentem desejo de
brincar, são levadas a buscarem melhores condições financeiras exigindo
esforços e sacrifícios ao trabalho manual e pesado. É possível inferir um grau
alto de responsabilidade das crianças para com a suas famílias, como enuncia
CB4: “Trabalho aqui pra
quando eu cresce eu ajudá o meu pai a trabaiá”, CB3 já se conforma com a situação em que se encontra:
“Eu acho que não trabalho porque não
tem jeito de não trabalhá memo”.
Participantes: As crianças enunciam diante da câmera
enquanto outras são mostradas sentadas ao chão, quebrando pedras, em um
trabalho de grande esforço, descalças, sem proteção contra o sol escaldante,
descamisadas. Em outra cena, CB5 revela o motivo de gostar de trabalhar alí,
que parece ser outro lugar: “O
trabalho aqui é bão ... trabalha na sombra ... não toma sol, porisso que é
bão”. Em seguida descrevem o pouco que ganham, para que estão trabalhando dessa
maneira, e o que gostariam.
Os enunciados aqui estudados pertencem a um campo
semântico que podemos mencionar como “infância”, é dizer, apresentam
características como comportamentos, ações, desejos, aspectos físicos, idades,
mesmo o grupo 1, que parece bem distanciado em relação as crianças, pode-se inferir
que também se enquadra nesse campo, por serem estas vítimas da mortalidade e
tristeza de suas mães.
Por meio das teorias de Fiorin (2005) e de
Kerbrat-Orecchioni (2006) podemos reconhecer a necessidade dos marcadores
linguísticos que auxiliam na produção de sentido, assim como a noção de
interação e de conversação. Também a necessidade do contexto: o lugar, o
objetivo e os participantes, para a atribuição de sentido e a eficácia na
contextualização dos enunciados.
Portanto é possível conferir ao estudo um caráter
reflexivo, a partir do corpus analisado, podendo levar ao leitor a reunir a
noção de contexto pertinente para cada um dos grupos, e ser possível uma
avaliação.
Ao
final do documentário a frase: “Ser criança não significa ter infância”, remete
a uma ideia de privação de um tempo determinado por obrigação ou
comprometimento, enquanto umas crianças mais que outras, mas todas sendo
impedidas de ter infância, renegadas a comportamentos adultos por falhas ou por
ordens.
Referências
FIORIN, J. L. A
linguagem em uso. In: ______ (Org.). Introdução à linguística I: objetos teóricos.
2. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Análise da conversação: Princípios e métodos. São Paulo: Parábola
Editorial, 2006. Tradução de Carlos Piovezani Filho.
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