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domingo, 22 de setembro de 2019

A Invenção da Infância: seu contexto e seu enunciado

Neste trabalho, examinaremos o contexto e o enunciado de pessoas, especificamente mães e crianças, presentes no documentário “A Invenção da Infância”. Lançado em 2000 e produzido por Liliana Sulzbach e Mônica Schmiedt, no Rio Grande do Sul, com duração de 26 minutos, o documentário reflete sobre o que é ser criança e a relação com a infância.
Para isso usaremos o conceito da Pragmática, conforme Fiorin (2015, p. 166) “é a ciência do uso linguístico, estuda as condições que governam a utilização da linguagem, a prática linguística”, assim como ela “deve explicar como os falantes são capazes de entender não literalmente uma dada expressão, [...] devem mostrar como se fazem inferências necessárias para chegar ao sentido dos enunciados”. (FIORIN, 2015, p. 168). Também, para este breve estudo, usaremos os princípios e métodos de Catherine Kerbrat-Orecchioni, que conceitualiza a análise das conversações, o contexto e o material verbal, paraverbal e não verbal.
Por fim, tentaremos entender os processos pragmáticos que permeiam os discursos analisados e seus contextos a fim de aplicar ao material analisado os procedimentos teóricos propostos para a atribuição de sentido.


            As reflexões e análises deste trabalho são fundamentadas a partir da linguagem em uso defendidas por Fiorin (2005) e pelos conceitos da análise da conversação prescritos por Kerbrat-Orecchioni (2006).
            Conforme menciona Fiorin (2005, p. 166) “a Pragmática é a ciência do uso linguístico, estuda as condições que governam a utilização da linguagem, a prática linguística”, usaremos esse referencial teórico para observar, em alguns trechos do documentário, a linguagem em uso. Usaremos também a vocação comunicativa da linguagem verbal, o que seria conforme os postulados de Kerbrat-Orecchioni (2006) a efetividade do exercício da fala, que implica normalmente uma alocução e ainda uma interlocução promovendo uma interação.
            Conforme Kerbrat-Orecchioni (2006) o contexto, também chamado como situação comunicativa, é a mescla dos seguintes elementos: o quadro espacial e o quadro temporal, o objetivo global da interação, e seus participantes, tendo seus papeis interlocutivos assinalados, assim “as conversações são ‘construções coletivas’ feitas de palavras, mas também de silêncios e de entonações, de gestos, de mímicas e de posturas” (Kerbrat-Orecchioni, 2006, p. 36), em que esses mecanismos de construção dialógica são conceitos postulados pela autora que os apresenta como material verbal, paraverbal e não verbal.
            Para Fiorin (2006, p. 169) “a Pragmática concebe que as chamadas palavras do discurso [...], cuja função varia de acordo com o contexto linguístico em que se acham colocadas; significam porque há uma instrução sobre a maneira de interpretá-las.
            Nesse sentido iremos analisar os fragmentos do documentário interagindo com essas teorias a fim de evidenciar o contexto e o discurso presente nesse gênero.


            Fora assistido o documentário “A invenção da infância” e escolhidos trechos dos enunciados proferidos por um grupo de pessoas. Divididos esses trechos em 3 grupos, a saber: grupo 1, “as mães”; grupo 2, “as crianças A”; grupo 3, “as crianças B”.

Grupo 1: As mães
Linha
Mãe
Tempo
Enunciado
01
M1
03:38
Sou mãe de nove, aliás dez. Dois morreru.
02
M2
03:55
Dois eu tenho vivo i quatro morreu.
03
M3
04:05
Morreru assim de repente, sei lá!
04
M4
04:15
Morreu ... ((pensativa), morreu de morte ((rindo))
05
M5
04:31
Tive 28 ... 28 filho, tem 7 vivo ... oliás tenho 6... é são 6 filho

Grupo 2: As crianças A
Linha
Criança
Tempo
Enunciado
01
CA1
06:59
Ah, eu faço um monte de coisa, ando de bicicleta, ando de patins.
02
CA2
07:47
Jogar videogame... jogar bola
03
CA3
09:04
Às vezes eu durmo direto que tô muito cansada
04
CA4
09:15
Carrego um pouco assim esse monte de coisa que a gente tem pra fazer
05
CA5
14:34
Eu faço balé e faço natação (...) e vôlei na escola

Grupo 3: As crianças B
Linha
Criança
Tempo
Enunciado
01
CB1
07:12
Brinco mais os amigos, de bola, de revólver, de um bucado de brincadeira mais.
02
CB2
07:42
Matá passarinho, ( )
03
CB3
08:43
Eu acho que não trabalho porque não tem jeito de não trabalhá memo.
04
CB4
09:19
Trabalho aqui pra quando eu cresce eu ajudá o meu pai a trabaiá.
05
CB5
09:51
O trabalho aqui é bão ... trabalha na sombra ... não toma sol, porisso que é bão.


Grupo 1: As mães

            Contexto: Bahia. As mães aparecem no início do documentário, após uma pequena introdução sobre descobertas científicas de características sociais e históricas de maneira progressiva até chegarem ao Brasil. Desse modo o documentário conduz o receptor a partir do Renascimento, período de grandes descobertas, passando por Colombo, descobrir da América e finalmente a Cabral que descobriu o Brasil.
            Em seguida podemos observar diversas cenas de vidas urbanas e rurais com suas comunidades e divididas por realidades distintas. Dá ênfase as cenas com crianças desprotegidas e vulneráveis, em um ambiente árido, ensolarado, com poucos recursos.
            A primeira cena de fala ocorre pela M1, antes disso há um grupo de crianças, carregando um pequeno caixão, sobre uma rua larga de areia, enquanto um porco atravessa a mesma rua. M1 está à janela, de madeira, sustentando seu filho bebê, mais três outras crianças ao seu lado e enuncia: “Sou mãe de nove, aliás dez. Dois morreru”. A segunda cena de fala acontece quando M2, está sentada ao lado da porta de sua casa e há uma pequena criança bocejando, enuncia: “Dois eu tenho vivo i quatro morreu”. Os demais enunciados, M3: “Morreru assim de repente, sei lá!”, M4: “Morreu ... ((pensativa), morreu de morte ((rindo))”, M5: “Tive 28 ... 28 filho, tem 7 vivo ... oliás tenho 6... é são 6 filho”, apresentam um contexto comum, ou seja, todas as mães perderam seus filhos por doenças, fome, necessidades. Estão todas em situações de vulnerabilidade social, privadas de necessitadas de básicas.
            Objetivo: O objetivo inicial do documentário é situar ao receptor qual momento está sendo retrato, as condições dos indivíduos, a localização geográfica e as práticas dessa comunidade, assim como as dificuldades e as consequências sofridas por essas pessoas nesse momento.
           Participantes: Não há uma conversão face a face, pois as mães vão falando e sendo registradas pela câmera, mas é possível inferir que são perguntadas a elas, embora as perguntas não são mostradas. São características comuns dessas mães: a mortalidade infantil de seus filhos, o trabalho para a manutenção da família, a pobreza generalizada, a escassez de recursos e a quantidade de filhos que se assomam.

Grupo 2: As crianças A

            Contexto: São Paulo. O lugar desse grupo de crianças é fechado, ou seja, estão no parquinho de um condomínio residencial, em uma cadeira ao lado da piscina, em uma sala, sobre um sofá em que pela janela é possível observar que esse ambiente é um prédio, pois se vê uma tela de proteção e casas abaixo.
            As atividades dessas crianças são descritas pela CA1: “Ah, eu faço um monte de coisa, ando de bicicleta, ando de patins” e pela CA2: “Jogar videogame... jogar bola”, como atividades comuns de crianças.
      Objetivo: Intenciona-se retratar a vida da criança, seus afazeres e suas responsabilidades, de modo que podemos inferir que é, aparentemente, diferente da vida de um adulto. Em suas falas há descrições reais sobre comportamentos, do que gostam e também o que desgostam.
            Participantes: As crianças são mostradas fazendo aulas de balé, falando com a câmera no sofá ou em uma cadeira ao lado da piscina. Refletem um discurso de obrigações impostas, durante o dia, que as deixam exauridas como: CA3: “Às vezes eu durmo direto que tô muito cansada”, CA4: “Carrego um pouco assim esse monte de coisa que a gente tem pra fazer” e CA5: “Eu faço balé e faço natação (...) e vôlei na escola”.

Grupo 3: As crianças B

     Contexto: Bahia. O lugar desse grupo de crianças é aberto, ou seja, suas atividades se dão ao ar livre sem a proteção física de uma casa por exemplo. CB1 enuncia: “Brinco mais os amigos, de bola, de revólver, de um bucado de brincadeira mais”, e “Matá passarinho, ( )” conforme confessa CB2. Esse grupo brinca à rua, descalços, descamisados e com brinquedos feitos por eles próprios de acordo com a sua imaginação.
     Objetivo: É notório observar a rotina similar que a criança suporta como o adulto de seu meio, embora apresentem desejo de brincar, são levadas a buscarem melhores condições financeiras exigindo esforços e sacrifícios ao trabalho manual e pesado. É possível inferir um grau alto de responsabilidade das crianças para com a suas famílias, como enuncia CB4: “Trabalho aqui pra quando eu cresce eu ajudá o meu pai a trabaiá”, CB3 já se conforma com a situação em que se encontra: “Eu acho que não trabalho porque não tem jeito de não trabalhá memo”.
      Participantes: As crianças enunciam diante da câmera enquanto outras são mostradas sentadas ao chão, quebrando pedras, em um trabalho de grande esforço, descalças, sem proteção contra o sol escaldante, descamisadas. Em outra cena, CB5 revela o motivo de gostar de trabalhar alí, que parece ser outro lugar: “O trabalho aqui é bão ... trabalha na sombra ... não toma sol, porisso que é bão”. Em seguida descrevem o pouco que ganham, para que estão trabalhando dessa maneira, e o que gostariam.
  

            Os enunciados aqui estudados pertencem a um campo semântico que podemos mencionar como “infância”, é dizer, apresentam características como comportamentos, ações, desejos, aspectos físicos, idades, mesmo o grupo 1, que parece bem distanciado em relação as crianças, pode-se inferir que também se enquadra nesse campo, por serem estas vítimas da mortalidade e tristeza de suas mães.
            Por meio das teorias de Fiorin (2005) e de Kerbrat-Orecchioni (2006) podemos reconhecer a necessidade dos marcadores linguísticos que auxiliam na produção de sentido, assim como a noção de interação e de conversação. Também a necessidade do contexto: o lugar, o objetivo e os participantes, para a atribuição de sentido e a eficácia na contextualização dos enunciados.
            Portanto é possível conferir ao estudo um caráter reflexivo, a partir do corpus analisado, podendo levar ao leitor a reunir a noção de contexto pertinente para cada um dos grupos, e ser possível uma avaliação.
Ao final do documentário a frase: “Ser criança não significa ter infância”, remete a uma ideia de privação de um tempo determinado por obrigação ou comprometimento, enquanto umas crianças mais que outras, mas todas sendo impedidas de ter infância, renegadas a comportamentos adultos por falhas ou por ordens. 

           
Referências

FIORIN, J. L. A linguagem em uso. In: ______ (Org.). Introdução à linguística I: objetos teóricos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Análise da conversação: Princípios e métodos. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. Tradução de Carlos Piovezani Filho.

SULZBACH, Liliana. A Invenção da Infância. 2000. In Portacurtas. Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2018.

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