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domingo, 22 de setembro de 2019

A HORA DA ESTRELA: Em meio ao silêncio está a permissão da conscientização da existência não conseguida pela materialidade linguística



“La expresión estética es irreductible a la palabra y no obstante solo la palabra la expresa.”
(Octavio Paz)

Este trabalho tem por objetivo apresentar algumas leituras da obra última de Clarice Lispector, A HORA DA ESTRELA (1977). Inicialmente, através da perspectiva do silêncio, estado em que se torna possível a conscientização da existência não conseguida pela materialidade linguística. Busca-se tentar explicar que apesar da linguagem ser um caminho para a explicação, o entendimento, a nomeação, construindo discurso sistemáticos de apresentação, ela se mostra limitada revelando apenas aquilo que se fala sobre, uma representação.
Também se propõe a apresentar uma breve representação social, psíquica e irônica da obra. Os textos usados para apoiar essas leituras são de BORGES, 2014; GOTLIB, 1995; HOMEM, 2001; MENEZES, 2017; NUNES, 1969 e PORTELLA, 1978, a fim de tentar evidenciar o proposto tendo por base essa narrativa alicerçada em uma angústia do narrador-personagem diante da representação da insignificância de uma moça de miséria anônima.

Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?
(Clarice Lispector)

O último romance de Clarice Lispector fora publicado em 1977 e adaptado para o cinema em 1985 pela cineasta e roteirista brasileira Suzana Amaral. A HORA DA ESTRELA, assim como os demais doze títulos do livro, trazem aspectos marcantes sobre a narrativa, embora imperceptíveis a primeira leitura, posteriormente os títulos contribuem para o entendimento sobre a estrutura e as camadas narrativas sobrepostas convergindo em um texto construído basicamente sob dois planos, superficialmente temos a história de Macabéa e menos explícito sobre as reflexões metas narrativas.
            No livro Clarice – Uma vida que se conta (1995), da professora e pesquisadora, Nádia Battella Gotlib, é possível conhecer os fatos históricos da escritora brasileira por meio de fotos, documentos, entrevistas, manuscritos, testemunhos, estes que dão voz à memória de um passado, ora incerto, materializados em uma cuidada biografia.
            É sabido que Lispector tem sua data de nascimento convencionada, pois, conforme Gotlib (1995, p. 59) “Clarice adota diferentes datas de nascimento. Embora alguns documentos seus continuem fiéis ao ano de 1920, [...] Clarice registra as de 1921, 1926, 1927...”. Essa incógnita, esse mistério, contribuem para dificultar uma descrição exata de quem foi Clarice Lispector.
Mulher, filha, mãe, escritora, títulos sociais de caráter multifacetado, em que não convergem para uma definição primeira e única daquela que alguns a espreitava pelo olhar distanciado e outros conviviam com a sua natureza conselheira e afável da simplicidade cotidiana. Sabe-se que nasceu na Ucrânia, em uma aldeia chamada Tchechelnik, e veio ao Brasil, com sua família instalando-se em Recife, com dois meses de idade. Seu pai de chamava Pedro e sua mãe Marieta, tinha duas irmãs, Elisa e Tania. Desse modo é possível entender essa citação da autora: “Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou o quê? Um quase tudo”. (GOTLIB, 1995, p. 49).

A história – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro.
(Clarice Lispector)

Em A HORA DA ESTRELA (1977) é possível observar um aspecto mero romanesco diluído em uma problematização sobre a escrita e consequentemente sobre a literatura. Em um jogo ficcional narrativo, que opera as ações do autor-personagem, da personagem e das reflexões e discussões meta narrativas, está baseado um estilo de desdobramento da consciência, tendo o tempo e o espaço, extensões de instantes presentes, um esboço sensorial permanente de natureza interrogativa. É dizer que “esta narrativa é, toda ela, uma interminável pergunta” (PORTELLA, 1978, p. 9).
Podemos ler no trecho a seguir a apresentação da história pelo autor-personagem, o jogo ficcional e seus desdobramentos, muito bem sintetizado, trazendo a chance de o leitor ingênuo encarar a narrativa como mera ação linear explicitamente demarcada:

A história – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guia de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e <> seguido de silêncio e de chuva caindo (LISPECTOR, 1978, p. 17)

Para Menezes (2017, p. 35), Clarice Lispector “utiliza do princípio irônico de composição”, tratando-se da construção de um “duplo movimento da escrita”:

[...] de um lado, a construção de uma trama de efabulação que visa iludir o leitor com todo o estratagema romanesco; e do outro, num viés contrário, o desnudamento do princípio de composição, constituindo um espaço no tecido textual, no qual é promovido um diálogo da literatura com a própria literatura. (MENEZES, 2017, p. 35).

Tal duplo movimento da escrita pode ser retratado por Benedito Nunes (1969, p. 137) como dotado de fracassos: “os dois fracassos, o da existência e o da linguagem, intimamente associados, ilumina a dialética interna do mundo imaginário de Clarice Lispector e a estrutura estilística que lhe corresponde”.
Desse modo, Nunes nos apresenta uma problematização sentida por aquele que tenta promover, contra seus hábitos, uma história linear, silenciosa e sensorial, a busca da linguagem do nada, anterior a representação mediada pela linguagem.
Ainda segundo o autor, que esclarece o sentido de fracasso, de expressão filosófica, segundo as concepções existenciais, poderia nos dizer a respeito do autor-personagem (Rodrigo S. M.) que ele “fracassa com a linguagem, isto é, com a experiência levada ao seu último limite, à sua extrema consequência, do confronto decisivo entre realidade e expressão” (NUNES, 1969, p. 137).
Essa busca, recheada por perguntas e reflexões, culminará com a morte, ou a falta de resposta, ou ainda a presença do silêncio, pois “esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo ma dê. Vós?” (LISPECTOR, 1978, p. 8), nesse trecho podemos estabelecer a ideia “que toda linguagem tem no silencio a sua origem e seu fim” (NUNES, 1969, p. 139), embora romper com esse silencio é um dever para o escritor, mesmo fracassando, porque “é preciso falar daquilo que nos obriga ao silêncio” (NUNES, 1969, p. 139), está aí novamente a busca da linguagem anterior, aquela linguagem próxima a impessoalidade, a neutralidade, a linguagem sem o Eu, novamente sendo alvo de perseguição.

O vazio tem o valor e a semelhança do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu – a meu mistério.
(Clarice Lispector)

A problematização acerca dos limites da própria linguagem é para o Rodrigo uma constante: “a minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique” (LISPECTOR, 1978, p. 15), assim a sua narrativa oscila entre a fronteira interior e exterior, mundo e linguagem, buscando o indizível, uma forma de como narrar, representar e dizer sem ser intermediado. Busca no intuito de mostrar, em um franco exercício de depuração linguística, uma personagem insignificante.
Clarice Lispector cria uma personagem que irá discutir e refletir sobre a escrita e consequentemente sobre a literatura em uma prosa que beira a poesia, assinalando um ser “abandonado, entregue a si mesmo, livre, o homem que se angustia vê diluir-se a firmeza do mundo”. Desse modo, podemos inferir que “qualquer que seja a posição filosófica da escritora, o certo é que a concepção-do-mundo de Clarice Lispector tem marcantes afinidades com a filosofia da existência (NUNES, 1969, p. 94).
Rodrigo é um intelectual, escritor experiente e questionador que afirma: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”. (LISPECTOR, 1978, p. 15), que constata: “não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas (LISPECTOR, 1978, p. 24) e que declara afirmações paradoxais, condição de não familiaridade com a proposta escritura: “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta”. (LISPECTOR, 1978, p. 21), como um escritor vive sem as palavras? Como conceber a função social de seu existir sem a sua matéria prima de trabalho? Podemos aqui inferir que aquilo “que era familiar torna-se-lhe estranho, inóspito. Sua personalidade social recua. O círculo protetor da linguagem esvazia-se, deixando lugar para o silêncio (NUNES, 1969, p. 95).
As questões existenciais e a discussão sociológica são aproximadas por Clarice Lispector em um mundo caracterizado por um paradoxo, um movimento de ida e volta marcados por uma estrutura narrativa de camadas sobrepostas, a história de Macabéa e as reflexões de Rodrigo, “os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo” (LISPECTOR, 1978, p. 15).
Conforme Nunes (1969, p. 117), “[...] o que interessa a Clarice Lispector não são os indivíduos em si, mas a paixão que os domina, a inquietação que os conduz, a existência que os subjuga”, seus personagens, ou seja, “os seres humanos que povoam o mundo imaginário de Clarice Lispector estão constantemente refletindo acerca do que sentem (NUNES, 1969, p. 117). Em “A HORA DA ESTRELA”, a presença e a ausência de sentir, materializada através de Rodrigo e Macabéa, enquanto ele reflete sobre o que sente, ela se ausenta no silêncio de sentir, “as coisas apresentam fisionomia dupla: a comum, exterior, produto do hábito, e a interna, grande e profunda, da qual a primeira se torna símbolo” (NUNES, 1969, p. 122).
Para Rodrigo, “a linguagem [...], envolve o próprio objeto da narrativa, abrangendo o problema da existência, como problema da expressão e da comunicação (NUNES, 1969, p. 130). Para Macabéa, um universo determinado por forças, leis naturais, imutável, sem individualidade, difícil de narrar, pois a sua pessoalidade aparece pouco, em um caráter providencialista de natureza não representativa, cabendo a Rodrigo a constatação do seu fracasso como escritor à frente da limitação da linguagem, “seria verdadeira a opção se prevalecesse, para a literatura, o aforismo de Wittgenstein: é melhor silenciar acerca do que não pode ser expressado” (NUNES, 1969, p. 127), essa citação pode ativar a confirmação inicial de Rodrigo sobre o silêncio, sua possível insensata busca, pois “um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu – a meu mistério” (LISPECTOR, 1978, p. 19).
Em outras palavras, a problemática do autor está atrelada à impossibilidade de representação da existência, por meio da linguagem, isto é, a linguagem, enquanto forma limitadora, não dá conta da materialização do pensamento. “Não conseguimos exprimir tudo o que somos e adquirimos um ser aparente mediante aquilo que conseguimos exprimir” (NUNES, 1969, p. 132), portanto o caminho possível é o nada, a morte, o silêncio. “No fim talvez se entenda a necessidade do delimitado” (LISPECTOR, 1978, p. 19).
Tal problemática é inquietante para o autor-personagem que busca refletir sobre essa metamorfose, detalhada por Nunes (1969, p. 132):

Essa metamorfose do ser real no ser da expressão não é, contudo, uma anomalia da linguagem. Ela traduz o fenômeno originário da fala (die Rede, segundo Heidegger), simultâneo ao fato do homem, como ser-aí (Dasein), encontrar-se existindo no mundo em permanente diálogo consigo mesmo e com os outros. Esse encontro já significa um distanciamento (transcendência, em linguagem filosófica) da realidade pura, dos dados brutos, das coisas tais como seriam anteriormente ao advento do homem.

Assim a limitação da linguagem em exprimir a existência do homem causa a ele uma tensão conflituosa pois ao produzir um material linguístico, através de uma ordenação discursiva reduz a sua condição anterior, ou seja, reduz a essência do objeto produzindo uma sombra que não representa a realidade, desse modo resulta apenas “numa imagem provisória, porém inevitável, do nosso próprio ser (NUNES, 1969, 132).
A linguagem não representa o estado de consciência, mas sim a sua projeção alinhada as condições estabelecidas entre o ser e o mundo que resulta em uma pseudoideia de nós mesmo, pois “o ser que conquistamos não é, pois, aquele para o qual o nosso desejo tende, mas aquele que a expressão capta e constrói, e que é, de qualquer modo, uma realidade provisória, mutável, substituível, que oferecemos aos outros e a nós mesmos” (NUNES, 1969, p. 133). Desse modo, “cada qual está se construindo, cada qual está fabricando, com o auxílio de palavras velhas ou novas, a ideia de si mesmo (NUNES, 1969, p. 133).
Rodrigo se mostra incapaz de produzir um discurso fiel, verdadeiro, da condição da existência perante seu ato de escrita, confere a esse estado de impossibilidade uma problematização da linguagem que poderia ser ponte, mas se mostra abismo. A sua tentativa de exprimir a condição de sua personagem, Macabéa, torna-se luta exteriorizada entre a necessidade de expressão e a limitação da constituição da linguagem. Desse modo Clarice Lispector “resume, ao nível da linguagem, o sentido que os problemas existenciais da expressão têm” em sua obra (NUNES, 1969, p. 133).  Para Portella (1978, p. 9), o narrador-personagem:

Assume, ao longo da história, três formas diversas de presença: a primeira delas faz do monólogo do narrador o fio condutor da ação e da reflexão, da linguagem e da metalinguagem. À proporção em que a temperatura trágica se eleva, as interferências monologais passam a desempenhar a função supletiva de amortecedor do sistema, com a cumplicidade permanente do impulso irônico. Já no segundo movimento, embora sem abrir mão das pausas ou das ingerências monologais, o narrador prefere o puro e simples relato, contando, descrevendo (“Descrever me cansa”), mas retornando rapidamente à proteção vertical do monólogo. Só no terceiro desdobramento – e a conversa entre a moça e o rapaz no banco da praça pública constitui um escasso exemplo – o narrador passa a palavra ao outro (PORTELLA, 1978, p. 10).

O processo metanarrativo está explícito na condução do texto por parte de Rodrigo, em que posiciona o leitor em relação à construção textual ao descrever o seu ofício: “não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases” e para apresentar a personagem Macabéa, “tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência” (LISPECTOR, 1978, p. 19), desse modo “a opção de Clarice Lispector foi a opção da linguagem, na certeza de que ela é o verdadeiro lugar da existência” (PORTELLA, 1978, p. 11) paradoxalmente o mesmo lugar dado ao silêncio, pois:

A linguagem como energia, atividade, trabalho, produtividade do sentido: não somente as palavras e as frases, mas “um sentido secreto”, que é mais do que elas. E este “sentido secreto” só se dá por inteiro ao nível do silêncio. Não a mudez opaca e doente, porém a forma dilacerada do grito. É preciso que se ouça o grito contido no interior do silêncio; que se perceba o destino sisifiano da palavra. Nós nos suicidamos em cada palavra que pronunciamos; e, no entanto, não podemos viver sem falar (PORTELLA, 1978, p. 11).

Há aqui uma discussão entre a linguagem e o silêncio, a problematização da representação que por meio da palavra se estabelece, ainda conforme o autor, “a vida é um problema de linguagem” (PORTELLA, 1978, p. 11), para Rodrigo, “a vida é um soco no estômago” (LISPECTOR, 1978, p. 100) e “a morte que é nesta história o meu personagem predileto” (LISPECTOR, 1978, p. 101).
O narrador-personagem tem na morte uma palavra final, um silêncio, uma concretude, a tal impessoalidade buscada, aquela que a linguagem limita, e essa “morte é um encontro consigo” (LISPECTOR, 1978, p. 103), embora é insuficiente, pois “não me completa, eu que tanto preciso” (LISPECTOR, 1978, p. 103). O que resta é o silêncio, pois “o silêncio é tal que nem o pensamento pensa” (LISPECTOR, 1978, p. 103).

Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho pela consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo.
(Clarice Lispector)

Em uma leitura social da obra, Borges (2014, p. 66) discute o posicionamento social do narrador e o valor que ele empresta à narrativa:

O valor de A hora da estrela tanto na obra de Lispector como no conjunto da literatura brasileira, talvez esteja justamente no fato de o narrador não só ter consciência de que fala de um lugar social diferente de sua personagem, mas configurá-la tanto no plano da enunciação, como, principalmente, na estruturação formal do romance.

Desse modo, irá argumentar que Rodrigo tentará abordar um indivíduo de classe diferente da sua, por meio de um foco narrativo “em situação”, ou seja, “não caindo na falácia de falar em nome do e pelo pobre” (BORGES, 2014, p. 66), criando assim “um novo artifício de representação artística, uma vez que esse outro [ser] social surge como fantasmagoria do narrador-personagem” (Borges, 2014, p. 66).
            Ainda conforme a autora, Rodrigo S. M. ensaia uma denúncia da desigualdade social, representada por sua personagem e seu entorno e “pontua a existência de Macabéa como um fantasma, ou seja, ela existe subjetivamente para Rodrigo, afinal é sua criação, mas também assombrando as suas certezas e a sua “razão”. (BORGES, 2014, p. 67). Desse modo, Borges (2014, p. 67-68) defende que Rodrigo torna Macabéa como “um prolongamento da própria identidade, ao mesmo tempo em que marca suas diferenças sociais”, isto é “tal identidade com Macabéa se faz pela negação que engendra também a dificuldade de se aproximar de outra classe social e de não saber como se portar diante dela”.
            Para a autora, Macabéa não reage diante das situações injustas em que vive e é exposta, pois é um “títere fantasmático” de narrador-personagem, “que especularmente redesperta o seu próprio oco. Sendo uma fantasia da alteridade, Macabéa seria tudo que Rodrigo não é e não conhece” (BORGES, 2014, p. 78).
            É interessante observar a proposta de leitura da autora ao se referir a dificuldade de Rodrigo em apresentar a sua criação, pois “diante da dificuldade de exprimir a vida de Macabéa em palavras, Rodrigo utiliza, em muitos momentos do romance, a expressão “(explosão)”, assim entre parênteses, para manifestar sentimentos significativos da vida da nossa estrela” (BORGES, 2014, p. 80). Evidencia aqui uma argumentação de impossibilidade do narrador-personagem, detentor do poder e do ato de narrar, frente a sua incapacidade toma-se de um recurso metafórico no intuito de “dar corpo linguístico ao que ocorre com a subjetividade de sua personagem” (BORGES, 2014, p. 80).
            Para Gotlib (1995, p. 466) A HORA DA ESTRELA é um romance que “segue a trilha do romance social dos anos 30, que tem o Nordeste como espaço da fome e da miséria”, pois “lança a personagem já no cenário agressivo da grande capital”.

  
            O que escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requintes. Pois o que estarei dizendo será apenas nu. Embora tenha como pano de fundo – e agora mesmo – a penumbra atormentada que sempre há nos meus sonhos quando de noite atormentado durmo.
(Clarice Lispector)

Em uma abordagem psicanalítica da obra, Maria Lúcia Homem (2001) apresenta, através de um tripé vê a relação entre a personagem, o narrador e o espelho para fundamentar a sua leitura. Recorre os aspectos comuns ao autores, narradores e personagens para fundamentar a sua leitura imbricada entre eles, em uma “trama complexa onde o jogo de espelhos se intercala com o distanciamento e estranhamento inevitáveis do contrato com o outro diferente” (HOMEM, 2001, p. 126). Conforme a autora:

Não só entre a autora e Rodrigo se dá tal jogo complexo de espelhamento, mas também entre Clarice e Macabéa. Há inúmeros índices que unem a personagem e a ‘autora’ (“na verdade Clarice Lispector”): ambas mulheres, judias (Clarice pela origem, Macabéa pelo nome que carrega), nordestinas, migrantes e, finalmente, “datilógrafas”, trabalhando com a palavra. Aliás, ainda considerando as marcas identificatórias, diríamos que datilógrafos são os três: Macabéa, Clarice e Rodrigo S. M. O (os) autor(es) e sua(s) personagem(s). Certamente não é gratuito. Conforme apontado anteriormente, trata-se de um paralelismo que retoma a eterna questão “pirandeliana” ou mesmo “pigmaliana” (ou bíblica...) da relação do criador com a sua criatura. Nesse sentido, os jogos especulares que acontecem entre a autora, o narrador e a personagem inserem-se no interior de um território imaginário, todavia sempre significado pelo simbólico (HOMEM, 2001, p. 126).

Desse modo apresentar a centralidade do autor, a sua importância, é caro ao processo narrativo, pois “nos conta o processo pelo qual se cria a história que irá relatar” em outras palavras “sobre o ato de escrever” e vai além, “mais do que relatar os eventos vivenciados por sua personagem, o narrador reflete, incessantemente, sobre seu ofício” (HOMEM, 2001, pag. 126).
            Homem (2001, p. 127) irá defender que “ao enforcar a narração, reafirma-se continuamente a preocupação com o “sentido secreto” que se busca, além da representação pura e simples do objeto ou dos fatos”. Assim problematizará os limites da palavra, a forma de representação buscada pelo narrador-personagem em escolher qual palavra expressar sobre Macabéa.

Considerações finais
           
            Tentou-se neste trabalho abordar algumas leituras sobre A HORA DA ESTRELA, com ênfase na problemática da perseguição por uma linguagem do nada, do silêncio em face da materialidade linguística, instrumento esse reconhecido e trabalhado pelo ofício do escritor.
         É evidente que não se conseguiu esgotar os múltiplos sentidos atribuídos a essa obra densa de Clarice Lispector e a tentativa de escrever algo sobre as suas leituras é muito desafiador, incorrendo de grandes falhas discursivas e textuais, além de uma dificuldade argumentativa que desse conta da coesão de tantos textos em debate.
         Por fim, temos uma ideia sobre a questão literária e a problemática de representação da realidade, as visões sociais e irônicas da obra, assim como as de natureza metalinguística e metanarrativa.         

Referências

BORGES, Tânia Cristina Souza. "A culpa é minha" ou "A hora da estrela"?: uma análise do romance A hora da estrela de Clarice Lispector. 2014. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. doi:10.11606/D.8.2014.tde-03112014-150447. Acesso em: 2019-05-05.

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: Uma vida que se conta. 5. ed. São Paulo: ática, 1995. 493 p.

HOMEM, Maria Lúcia Stacchini Ferreira. No limiar do silêncio e da letra: traços da autoria em Clarice Lispector. 2001. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. doi:10.11606/T.8.2001.tde-17102011-104726. Acesso em: 2019-05-04.
LISPECTOR, Clarice. A HORA DA ESTRELA. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. 104 p.

MENEZES, Carlos Roberto dos Santos. A NARRATIVA IRÔNICA DE CLARICE LISPECTOR. Revista Ribanceira, Belém, v. 10, p.35-45, jul. 2017. Trimestral. Disponível em: . Acesso em: 04 maio 2019.

NUNES, Benedito. O DORSO DO TIGRE. São Paulo: Perspectiva, 1969. 278 p. Volume 17 da coleção debates.

PORTELLA, Eduardo. O Grito do silêncio. In: LISPECTOR, Clarice. A HORA DA ESTRELA. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. p. 9-12.

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