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domingo, 22 de setembro de 2019

A dualidade em “A Gata de Botas” de Beatrix Potter


"It is said that the effect of eating too much lettuce is "soporific." I have never felt sleepy after eating lettuces; but then I am not a rabbit" - Beatrix Potter


É comum encontrar gatos na literatura, assim como no cinema e em outras manifestações artísticas. Esse animal constitui um símbolo, que remete a significações diversas, entre elas estão a independência, a sensualidade, a sagacidade, e o mistério.
O gato de Cheshire, gato risonho, de Alice no País das Maravilhas (Lewis Carrol, 1865), O gato das Botas (Charles Perrault, 1977), O Bichento, o gato de estimação de Hermione Granger (J. K. Rowling, 1997), Plutão, o gato preto (Edgar Allan Poe, 1843) são alguns gatos que assomam na literatura e deixam sua marca, assim como Mishima, um gato de rua que transforma a vida hermética de Samuel, em “Amor em Minúscula” (Frances Miralles, 2006).
É possível trazer à memória, esses e muitos outros, gatos da literatura para uma comparação aleatória ou semelhanças cronológicas, mas não é tão fácil relembrar de gatas, ainda mais, espertas, independentes, aventureiras, corajosas, protagonistas de uma história.
De acordo com Sacramento (2016, p. 2) é de longa data a convivência felina na literatura, assim “o gato constitui uma temática extremamente extensa”, pois:

Na Antiguidade aparece em textos de Homero, Virgílio, Esopo, por exemplo. Na Idade Média, o gato aparece em farsas e fábulas, histórias de bruxarias. Durante a Renascença, escritores como Ronsard e Rabelais os odiavam, enquanto Montaigne nutria paixão pelos bichanos. No século XVIII, a obra Gatos, de François Auguste Paradis de Moncriff, descreve os gatos como alegres e independentes. Balzac, em O Sofrimento Amoroso de uma Gata Inglesa, denuncia, por meio das aventuras amorosas de uma bela felina, o puritanismo britânico e sua hipocrisia, no século XIX.

            Ainda conforme a autora, o gato adquire aspecto sobrenatural tendo, portanto, uma gama de representações simbólicas que variam de acordo com a cultura e determinadas regiões. É relacionado a esperteza, a astúcia, o azar, a sexualidade, e também “registre-se igualmente o feminino clássico cuja maior representante é a gata borralheira, moradora da cozinha, espaço feminino por natureza” (SACRAMENTO, 2016, p. 3).
Com base nessas informações, tenciona-se com esse texto discutir o protagonismo do feminino, em “Miss Catherine St. Quintin”, assim como observar a dualidade da personagem que aparece ora domesticada, pacífica, séria e bem-comportada e em seguida, sendo substituída por um gato, caçadora, aventureira, livre, em sua vida noturna.

O texto escrito em 1914 e publicado em 2017, em comemoração à celebração do 150º. Aniversário do nascimento de Beatrix Potter, é editado pela primeira vez como história individual, em Portugal baixo a chancela do Grupo Leya, Edições ASA II, S.A, tradução de Paula Neves, conta com as ilustrações de Quentin Blake, em que tenta imitar os aspectos ilustrativos característicos da também ilustradora inglesa do início do século XX.
“Era uma vez uma gata preta, séria e bem-comportada”, assim começa o conto de Beatrix Potter em que narra a história da corajosa e aventureira noturna “Kitty” ou “Miss Catherine St. Quintin”, como dizia ela [a gata] mesmo se chamar.
Dualidade é, conforme o dicionário on line de português define: “Particularidade ou característica do que é dual ou duplo; qualidade daquilo que contém em sua essência duas substâncias, dois princípios, duas naturezas etc.”, assim podemos dizer que “Q”, ou também “Troca-olhos”, outros nomes dados à gata por seus conhecidos, seria uma gata com essa particularidade, pois nunca haveria de apresentar-se a sua dona, uma velhinha simpática, “num casaco Norfolk masculino e pequenas botas de pelo”, o que naturalmente a ocasionaria uma dolorosa surpresa.
Assim a dualidade está ancorada no fato da gata apresentar comportamentos variáveis, por exemplo, de dia demonstra-se caseira, domesticada e dócil e a noite aventureira, corajosa e caçadora. Pode-se inferir dualidades também na questão do espaço: interno (casa) e externo (bosque), na temporalidade: dia e noite, nas nomeações: “Kitty” (a velhinha assim a chamava, nome atribuído por outro) e “Miss Catherine St. Quintin” (dizia chama-se, nome escolhido por ela), ainda também é possível verificar as dualidades a respeito da percepção de como a narradora a descreve: “Ora, porque é que a Kitty não tinha também a sensatez de regressar a casa? [...] ficar quietinha na casa”, “Não; receio que Miss Catherine fosse uma caçadora furtiva nata”, podemos inferir que “Kitty” poderia representar um lado da personalidade enquanto “Miss Catherine St. Quintin” o outro lado, sendo ela uma personagem com duas faces, pronta a mostrar a escolhida dependendo da necessidade.
O conto é narrado por uma voz feminina, o que pode ser inferido a partir da ilustração da página 16, pela afirmação: “Isto deixava-me confusa”, página 17, e também pelo texto em parênteses junto associado à ilustração, de uma mulher lendo um livro, na página 36, portanto temos duas representações de feminino atuantes na narrativa: a narradora e a protagonista da história.
O que faz da gata algo digno de nota é o seu comportamento, essa dualidade acima mencionada, sua capacidade de adaptação ao meio e o seu livre trânsito entre esses ambientes, pois demonstra uma competência analítica, um valor persuasivo e uma aptidão física para seus interesses.
Assim é possível perceber ao ler o conto, essas atribuições dadas à gata, que se comporta de maneira distinta com a sua dona. Vestígios de uma aventura noturna, o queixo sujo ou a cauda mais espessa, trouxe à narradora da história a constatação que “na verdade havia dois gatos pretos!”, em que alteravam-se para que um ficasse na lavanderia enquanto o outro saísse para caçar, assim “Pequenitates” cobria as caçadas noturnas de “Miss Catherine”.
Alguns dos fragmentos abaixo demonstram as características de personalidade atribuídas a ela: Exigente, segura, decidia: “Eu contesto que me chamem nomes” pág. 19. Planejada: “Pois este era o plano da marota da Kitty” pág. 19. Entusiasmada, caçadora: “Os olhos dela até brilharam: ela tinha visto um coelho uma vez no jardim”. Pág. 22. Corajosa: “Vou caçar ratos” pág. 27. Destemida: “Miss Kitty respondeu com um doloroso arranhão no rosto de ambos. E também lhes cuspiu” pág. 34. Envaidecida: “Miss Kitty ficou lisonjeada por ter sido confundida com um cavalheiro” pág. 28.
Conforme os adjetivos acima mencionados podemos inferir que a protagonista é bem decidida de seus atos e controla a sua vida, embora por outro lado, sendo ela uma personagem com duas faces, está sempre pronta a mostrar aquela dependendo da sua necessidade.
É interessante observar também a respeito das nomeações da gata, protagonista do conto de Potter, de acordo com Sacramento (2016, p. 3) analisando o primeiro poema do livro de T. S. Eliot, “O nome dos gatos” (2010), revela:

Eliot explica que um gato deve ter três nomes: um corriqueiro, um elegante e um secreto que só o gato conhece. [...] o jogo dos nomes remete às características “intrínsecas” de um gato, a saber: o paradoxo entre a banalidade e elegância e o mistério, o indecifrável contido em seu nome secreto.

A autora afirma que o poeta, neste poema, “metaforiza os olhares do outro sobre nós” (SACRAMENTO, 2016, p. 4), em relação aos nomes, pois cada um deles seria o olhar daqueles que estão mais ou menos próximos a nós, como os apelidos de família, os nomes próprios que usamos formalmente e até mesmo aquelas alcunhas que nos damos, que “revela como nós nos vemos e essa visão é o que nos faz mantermos fieis a nós mesmos”. (SACRAMENTO, 2016, p. 4).
Assim, de acordo com a perspectiva da autora, podemos inferir que as nomeações da gata “Kitty” pode ser um veículo “para se discutir, de forma leve e bem-humorada, o eu e o outro, os olhares que se cruzam em nossa vivência”. (SACRAEMENTO, 2016, p. 4).

            O conto de Beatrix Potter é muito cômico, há aventuras na floresta, com animais, sustos e perigos, mistério e vida noturna. Assim como as suas demais histórias, a vida rural predomina e seus animais são sempre os protagonistas.
É importante notar acerca da estrutura narrativa que marca seu incipit, “Era uma vez”, a alusão aos contos de fadas deixando claro uma imprecisão temporal, assim também é possível observar um caráter pedagógico em seu explicit, “Desde esse dia...”, comuns nesse gênero.
Ainda que não haja uma moral explícita, como tão fortemente está marcada em “Pedro, o coelho”, conto muito conhecido de Potter, a autora traz, no final de sua narrativa, uma mudança dos hábitos de “kitty”, o que se torna transformador. Ela definitivamente abandona a sua vida exterior, caçando apenas no jardim, e reclusa torna-se doméstica e coxa, tomando lanches com as gatas mais respeitáveis da vila, enquanto “Pequenitates” vivia no bosque.
É possível inferir uma relação da gata e a sua narradora, com os comportamentos humanos e seus desdobramentos, assim como podemos concluir que, em uma análise um pouco menos superficial do texto, não se trata apenas da gata o conto de Potter, mas sim das “relações que subjazem aos simbolismos conferidos aos bichanos, [que] acabam por tocar nos comportamentos e concepções humanas”. (SACRAMENTO, 2016, p. 7).
Em síntese, e em uma possível leitura, o texto está a falar sobre o comportamento da mulher no início do século XIX, suas façanhas, suas diversidades, seus conflitos, seu comportamento, ainda sobre a penalidade de viver uma vida aventureira e posteriormente ver-se obrigada a voltar a habitar uma casa de maneira completa, sendo dia e noite, abstendo-se de uma manifestação livre de seu instinto e de sua liberdade.          

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