As horas pintavam o passado
cada vez mais veloz, a janela aberta balançava a cortina que dançava ao som de Je reste la même de Annabelle Mouloudji.
Era tarde de uma noite fria, mesmo assim ela deixava o vento noturno roçar em
sua pele eriçada. Desliguei a luz da sala e continuei ali, através da minha
janela, observando ela se despir, imaginei-a com um jeans e um salto alto,
estava com uma jaqueta preta que ao tirar reluzia, à luz da lua, uma
saboneteira alva. Imaginei-a dançar por aquela sala enquanto se mantinha
elegante e sedutora.
Liguei o abajur e se fez uma
luz indireta, mantinha a esperança de que ela me notasse, que acenasse para o
apartamento da frente. Estava pronto para retribuir com um sorriso e um gentil
movimento de sim com a cabeça. Continuei ali, e ela continuou a dançar, estava
feliz, parecia feliz. Eu costumava ser assim, calado sem coragem, não me
atrevia tampouco a acender a luz, pensei que ela poderia se aborrecer ou
encerrar aquele espetáculo tão prazeroso e bonito. Eu a queria e a observava.
Ela mudou de música, a noite
estava tão silenciosa, ou eu imaginativo, que escutava La quiero a morir de Shakira, era aquela versão que ela canta em
francês. “Que mulher fantástica”, pensei. A um piscar lento ela desapareceu, a
janela continuou aberta, a morena de cabelos longos ausentou-se, meu rosto se
entristeceu, minha consciência pesou, por pensar que, talvez, ela tivesse
percebido aquele atrevido observador.
Eu me lamentava, mirando apenas o meu assoalho
gasto de madeira quando ela ressurgiu, ainda mais feminina. Continuava a dançar
naquela sua sala escura, iluminada apenas pela luz daquela lua cheia que me
ajudava a ser o perfeito investigador, que percebia tudo, cada passo, cada
volta, cada sorriso.
Ela parou em frente à janela,
começou a observar a rua deserta e com um simples piscar ela olhou na minha
direção, eu ali, estático, acenou, eu não acreditei, acenou novamente, olhei
ridiculamente para trás, e sorri, retribuí o aceno. Ela desapareceu da janela.
Eu conscientemente pensei que ela chamaria a polícia, mas continuei ali. Ela
voltou, acendeu a luz da sala e me convenci que, sim, ela também me observava,
sorriu e mandou um beijo com as mãos, apagou a luz, fechou a janela, cerrou a
cortina e fiquei sentado até amanhecer, imaginando se tudo foi um sonho
maluco. Entendi que o que houve foi
apenas um episódio das músicas que me trouxeram aqui.