CENA
III
Manoel (Pantanal), Fernando
O poste de luz recuperou a sua
luminosidade e agora não piscava tão frequentemente. O quarto volta a ter a
iluminação pública como a única forma de luz. Fernando sai da janela, se
aproxima da cama, passa as mãos no rosto e suspira. Busca uma camiseta seca
depositada no mancebo e troca a camisa molhada, troca também à calça por uma
bermuda.
Fernando
– O que está acontecendo comigo? (volta-se diante a escrivaninha, olha a última
carta enviada por Clarice, toma a carta de Manoel nas mãos e pensa olhando para
um ponto qualquer da parede. Nesse instante o poste pisca novamente e Manoel
aparece no quarto, ao lado da cama, atrás de Fernando, com um chapéu de palha
de abas largas vestindo uma camisa listrada, uma calça jeans, um par de longas
perneiras de couro, e nos pés botinas com elástico.).
Fernando
(vira-se para trás e exclama assustado) – Ai Jesus! Manoel? (duvidando) Quem é
você?
Manoel
(zombeteiro) – Sou ninguém. Claro que sou o Manoel, o pantanal, já se esquecera
de mim? Li a sua carta na semana passada.
Fernando
(ainda incrédulo tenta entender essa situação atípica fixando os olhos em
direção ao amigo para acreditar naquela visão e exclama) – Mas como?
Manoel
(sério) – Pessoa! Acredito que é hora de me despedir.
Fernando
(impactado e triste) – Você também morreu? (olha para cima com a expressão de
incredulidade) Não é possível, o que está acontecendo comigo? Só pode ser um
sonho, um pesadelo.
Manoel
– Não morri, embora vamos todos morrendo a cada dia, isso ninguém fala, pois
parece obvio demais, não é? Bom, o que interessa é que a minha partida é para o
Pantanal.
Fernando
(surpreso) – O Pantanal? O lugar que você sempre quis estar? E inventava
aqueles planos mirabolantes nas nossas conversas de vida nova, contato e
prática com a natureza?
Manoel
– Pois é, meu amigo. Vou ser pesquisador em um grupo na UFPan, Estudos
fronteiriços.
Fernando
– O quê? Que orgulho meu amigo. Você sempre se simpatizou por essa terra, que
nunca viu fronteiras e sempre criava palavras novas rompendo tais barreiras
verbais. Estou muito feliz por você. Embora eu desconheça ao certo o que isso
significa, confio na sua capacidade de seleção e conheço a sua vontade de
pertencer a esse ambiente.
Manoel
(olhando para o chão) – Obrigado Pessoa. Mas não é só isso que me traz aqui.
Gostaria de insistir na ideia da contemplação da natureza. Vai parecer uma
ladainha, que por você é tão conhecida, mas falo sério. O tempo não para e
precisamos parar restabelecendo a nossa energia, definir novos rumos e acredito
que só a observação da natureza pode trazer esse estágio mais equilibrado a
você.
Fernando
(impaciente) – Já sei que me vai dizer... Que ando rápido demais, que nunca
tenho tempo, que minha rotina me esgota. (eleva-se a voz) Isso eu sei, eu vivo
isso. Pantanal (voz embargada) eu me sinto como a música da Adriana Calcanhoto,
sabe aquela parte:
“Eu perco o chão
Eu não acho as palavras
Eu ando tão triste
Eu ando pela sala
Eu perco a hora
Eu chego no fim
Eu deixo a porta aberta
Eu não moro mais em mim”.
(Adriana Calcanhoto, A Fábrica do Poema, 1994).
Fernando (triste) – Confundo a vida com
os quadros do Edward Hopper. Pra mim é a moldura mais apropriada nesses meus tempos.
Você o conhece?
Manoel (pensativo) – Aquele americano
que pintava sobre a solidão no mundo contemporâneo?
Fernando – Sim, é meio triste pensar
assim, não?
Manoel – Não exatamente, afinal quem
nunca se sentiu assim?
Fernando (suspira) – Ah, Pantanal. Hoje
sou aquela mulher, do quadro: “Morning sun” de 1952. Olho pela janela com olhos de nada ver,
perdidos em pensamentos. (pausa) Quando não consigo me expressar, recorro à
arte para ser o mecanismo das minhas metáforas.
Manoel
(sereno) – Não conheço esse quadro, afinal só conheço o mais famoso, o...
(tentando lembrar) “Nighthawks”. (mudando de assunto) Acalme-se! Hoje não foi
um bom dia para você. Talvez saiba que a Estrela morreu.
Fernando
(voz triste, cabisbaixo) – Sim, eu soube.
Manoel
(continua sereno) – Pois bem, com essa correria não notamos que ela estava bem
apagadinha, estava sempre cansada, não tinha apetite, muito magra e rouca,
pálida, pensámos que era o efeito da dieta e sempre a repreendia, pedindo que
tomasse atenção, e do nada... Pois a morte sempre acontece assim, não? Do nada,
ela foi diagnosticada com tuberculose e morreu na sexta-feira no Rio de
Janeiro.
Fernando
(assustado) – Ela não foi atropelada?
Manoel
(surpreso) – Atropelada? Não! Foi tuberculose, a sua mãe me disse. Talvez ela
quisesse ter sido, não me espanta. Clarice sempre escondia o real motivo de
seus infortúnios. Algo comum entre os humanos, não? Tudo um modelo escondido.
Fernando
(senta na cadeira e abaixa a cabeça olhando para o chão em silêncio).
Manoel
– Foi difícil para todos nós, acredito ainda mais para você. Quando soube tive
vontade de correr até aqui e sacudir você. Não posso deixar mais um amigo
partir sem que eu, ao menos, o diga que há vida diferente dessa rotina
existencial que nos convencemos a viver. É claro que há medos, inseguranças,
mas há que tentar mudar, se autoconhecer.
Fernando
(impaciente) – Você novamente com esse discurso, parece autoajuda.
Manoel
(sereno) – São sempre um paradoxo os significados das palavras, os discursos
não representam em sua totalidade o que desejamos expressar. Para você soa como
se fosse algo piedoso. Longe de sugerir a você um caminho a prosseguir e ter
perfeitamente a resolução de seus problemas íntimos, tento nesse diálogo curto
fazer perceber a sua grandiosidade de realizar. O passado e o futuro não
existem, é no presente que você tem as possibilidades. “Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é
aquele que descobre as insignificâncias - do mundo e as nossas.” (Citação
do poeta brasileiro Manoel de Barros).
Fernando
(calmo) – Você está certo, Pantanal. Às vezes estamos em um conflito interno
tão tempestuoso que não ouvimos direito, não conseguimos enxergar um palmo a
frente dos olhos com claridade. Acredito que preciso de uma boa noite de sono,
equilibrar as ideias.
Manoel
– Eu já estava de saída, fique bem e me escreva. Um abraço.
Fernando
(apressado) – Manoel...
A luz do quarto se vai, com ela Manoel,
o poste retira a luz que entrava pela janela permanecendo, há apenas um breu e
Fernando, solitário, envolto em seus pensamentos tortuosos em companhia de uma brisa
noturna que invade a janela.