CENA
IV
João (Leitão), Fernando
O quarto continua escuro. Fernando abre
a gaveta do criado mudo e toma nas mãos uma caixa de fósforos. Risca-o na lateral da caixa e acende o toco de vela ajustando-o no castiçal. Apoia o
castiçal na escrivaninha, organiza os envelopes em cima dela.
Fernando
(refletindo) – Se eu contar isso a alguém já não terão dúvidas da minha insanidade.
Clarice – a Estrela, Manoel – o Pantanal, só me faltava agora o João – o
Leitão...
João
– Você me chamou Pessoa?
Fernando
(Se vira bruscamente após ouvir as palavras de João) – Ah não, estou louco
mesmo!
João
– O que você disse menino?
Fernando
(cansado e convencido com aquelas aparições inusitadas) – Nada.
João
– Pois bem, o que lhe afilhe Pessoa?
Fernando
– Não sei por onde começar, não sei nem porque estou falando com alguém que não
tenho a certeza que está aqui. São tantos nãos sei na minha cabeça, que duvido
da realidade e é embaçado o meu raciocínio.
João
– Vamos tentar ser simples, sem buscar uma resposta para todas as perguntas sem
respostas da vida. Essas cartas que estão ai são de quem?
Fernando
– De quem mais poderiam ser? Suas, da Clarice, do Manoel. E parece que hoje
resolveram me visitar todos, talvez uma ilusão criada pela minha mente para
pregar uma peça grande, um caminho para que eu me reconheça tão louco como me
dizem.
João
(sorrindo) – Sempre dramático esse menino. Nada mais comum em falar com amigos,
mesmo quando para alguns parece loucura se eles não estão fisicamente próximos.
(mudando de tom, mais sério) Pare de tentar ser aceito por medíocres que nem
tenham ideia do que é viver. Apenas se limite a respeitá-los e se distancie
para que aquela atmosfera não o contagie.
Fernando
(parando junto à janela) – A Clarice disse que era para olhar para lá, além
dessa janela, ela me perguntou o que eu vejo. O que você vê?
João
(sorrindo) Eu vejo pessoas, o que você vê?
Fernando
(sorrindo) – Você sempre tonto. (mais sério) Como assim pessoas? É um terreno
baldio, infértil, que ninguém quer. Abandonado a sua própria sorte, sujo de
lixo, mantido por irresponsáveis, produtor de ratos asquerosos.
João
(se distancia da janela e se aproxima da porta) – Cada indivíduo vê o que quer
ou o que consegue, não é? Podia dizê-lo que através dessa janela há um
horizonte cheio de oportunidades. Talvez pudesse dizer que não há nada além de
uma noite fria. O céu é um lugar compartilhado por todos, veja o céu.
Fernando
(incrédulo) – O que você está dizendo, Leitão?
João
(rindo) – Agora você me chama de Leitão? Isso era no tempo da faculdade, você
ainda preserva esses nomes para se sentir mais próximo de nós, não é verdade?
Algo como se fosse à palavra mágica da aproximação, do segredo de intimidade.
Isso é bom, é bom meu amigo. (sério) Pessoa, quantos humanos estão tentando
sobrevier aos conflitos internos e externos que são submetidos diariamente? Não
quero que você pense que estou generalizando para que a sua dor se torne menor,
não! Estou dizendo que estamos todos sobre o mesmo céu. Consegue entender isso?
Fernando
– Acho que sim. Mas já não tenho energia. Olhe para esse quarto, olhe aonde
cheguei depois de todas aquelas aulas na universidade, aqueles empregos mal
remunerados, as notas boas, a alegria de defender a tese, os abraços de vocês.
Só me restaram lembranças e a realidade não tem unidade básica, não tem diálogo,
só um monólogo aparente que disfarço entre sons de minha própria voz. Ela é tão
bizarra, pois mais que falem ao seu respeito, nenhuma realidade é tão crua e
nua como a própria vivida. Sou o pagador de promessas que ama seu burro que o chamo
de vida. Pareço louco?
João
– Parece-me normal. Afinal o normal é o anormal, pois o que é normal, Pessoa?
Fernando
– Normal, como dizem, é ter uma vida economicamente estável, para ser feliz
cuidando da família, dos animais de estimação e voltar para a casa sem muitos
conflitos e conseguir dormir. Ser normal é ter uma rotina, um teto, algo para
preencher o tempo e dormir. Acho que ser normal é participar de um ciclo
vicioso, ser embalagem da representação social, ser comum ao ponto de ser um
número. (voz embargada) É acreditar em algo, mas deixar esse algo em que se
acredita secar, e enquanto isso ir postergando até que não dê mais tempo para
alcançá-lo. Ser normal é ser covarde, é não respeitar os outros como eles são e
ditar seu comportamento por meio da sua embalagem cuidadosamente mantida
cotidianamente. (cabisbaixo) Sou normal, Leitão.
A
vela acaba restabelecendo a escuridão do quarto. Não se vê e não se houve mais
nada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário