CENA
II
Clarice (Estrela), Fernando
Fernando
(olhando para a plateia com voz embargada começa o seu monólogo) – Ah! Clarice,
nós a chamávamos de Estrela, pois desde que a conhecíamos lá no ensino médio.
Sagitariana, intelectual, aventureira, modesta, animada. Também era aquela
menina de grande luminosidade, de sorriso largo, de abraço sincero. Ficamos
amigos por afinidades.
Em
cena, ao fundo, Clarice, a Estrela, aparece. Vestida de um vestido branco
curto, de cabelos soltos e brincos brilhantes. Fernando continua a ler a carta
como se o diálogo entre eles fosse conduzido por essa mesma carta.
Fernando
– (continua sentado na cadeira, olha por trás de suas costas e se arrepia um
susto o sobressalta e vê Clarice tomando forma. Ele se precipita a levantar e a
tocá-la).
Clarice – Pare! Não me toque. Parece
um pouco bruto dizer isso a um grande amigo, mas o toque é sensação humana,
real. Estou aqui através dessa caligrafia irregular, de uma tentativa frustrada
de uso da norma padrão, que se não bloqueia, exclui, falamos oralmente, pois é
nesse campo que tenho liberdade para expressar aquilo que compartimos sem a
pressão da consulta de Celso Cunha e Lindley Cintra.
Fernando
(ainda não entende o que está acontecendo, um pouco perplexo vacila e pergunta)
– Como isso? Estrela?
Clarice
(como se parecesse óbvio essa aparição, sorri e responde) – Quem mais poderia
ser? Trump? O pato Donald? Amigo... (pausa)
o que você está sentindo é tão comum a todos nós que me envergonho de falar o
evidente. Entendo que o óbvio é subjetivo e que cada um lê conforme as suas
experiências, por isso, muitas vezes, as minhas cartas estavam inconclusas,
frases de espaços a preencher, fora proposital. Saiba que sinto saudades das
nossas conversas na universidade e estranho até hoje seu gosto por café amargo,
sem açúcar ou adoçante, mas já não estranho a sua peculiaridade diante às
impressões mundanas. Ah! Não venho trazer a paz, mas a espada. Esse conflito
vivido é tão natural como o céu é azul.
Fernando
(ouve tudo estarrecido tentando assimilar aquela cena e fala consigo mesmo) –
Ai Jesus! Devo ter chegado ao estágio de alucinações...
Clarice
(interrompe e grita) – Pessoa! Olhe para mim.
Fernando
(olha rapidamente para Clarice com cara de espanto)
Clarice
(fatigada) – Depois de tanto tempo fisicamente longe, de todas essas cartas,
você ainda quer perder tempo com essa baboseira de susto? Olhe para frente,
pela janela, há um terreno baldio? Ou há um mundo? Há lixo ou há reflexo?
(Fernando se levanta e olha para a janela – plateia).
(Enquanto
Clarice fala Fernando a ouvi olhando pela janela)
Clarice
– Sabe o Zygmunt Bauman?
Fernando
– Mais ou menos.
Clarice
– Então, morreu semana passada e ele disse que: “as redes sociais são uma
armadilha”. É, parece mesmo um artifício para os fugitivos da solidão. Como
você sobrevive sem energia elétrica?
Fernando
– É por pouco tempo, Estrela.
Clarice
– Ah, você sempre tão carinhoso, ainda não esqueceu o meu apelido de tempo
escolar, obrigado por manter esse vocativo. Então, depois que ele morreu, as
redes sociais trouxeram seus escritos e ele escreveu algo sobre amor líquido,
mas eu não entendi muito bem, acredito que tem a ver com as nossas relações
efêmeras e descreve essa fragilidade humana sobre o rótulo de amor líquido. Ah,
por favor, se você ler algo sobre isso me escreva rapidamente. Gostaria de
saber a sua opinião, talvez você possa me esclarecer sobre a minha condição.
Hoje carrego o fado de uma vida incerta, acho que também estou incrédula sobre
as superficialidades dos meus relacionamentos e isso reflete nas postagens
minhas no Facebook. Lá eu encontro um caos frequente de ódio e revolta, a
maioria são pseudoanalistas políticos e sociais de cadeiras confortáveis e
dedos ágeis dotados de uma precária competência emocional.
Fernando
(volta-se a olhar para dentro do quarto com nervosismo) – Estrela, para! O que
você veio fazer?
Clarice
(ruborizada) – ah, desculpa! Bom, eu acho que vim para me despedir e tentei
inventar uma história, pois me arrependi ao encontrar você assim, tão... perto.
Fernando
(assustado) – Despedir?
Clarice
(rápida) – Eu morri atropelada.
Fernando
(pasmo) – Como isso aconteceu?
A imagem da estrela se apagou, no justo
momento em que a única luz que mantinha a claridade do diálogo se desfez. O
poste de luz continuava a piscar, na sua incansável epilepsia.
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