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sábado, 1 de abril de 2017

Quem são eles? - Cena II


CENA II
Clarice (Estrela), Fernando

            Fernando (olhando para a plateia com voz embargada começa o seu monólogo) – Ah! Clarice, nós a chamávamos de Estrela, pois desde que a conhecíamos lá no ensino médio. Sagitariana, intelectual, aventureira, modesta, animada. Também era aquela menina de grande luminosidade, de sorriso largo, de abraço sincero. Ficamos amigos por afinidades.
            Em cena, ao fundo, Clarice, a Estrela, aparece. Vestida de um vestido branco curto, de cabelos soltos e brincos brilhantes. Fernando continua a ler a carta como se o diálogo entre eles fosse conduzido por essa mesma carta.
            Fernando – (continua sentado na cadeira, olha por trás de suas costas e se arrepia um susto o sobressalta e vê Clarice tomando forma. Ele se precipita a levantar e a tocá-la).
            Clarice – Pare! Não me toque. Parece um pouco bruto dizer isso a um grande amigo, mas o toque é sensação humana, real. Estou aqui através dessa caligrafia irregular, de uma tentativa frustrada de uso da norma padrão, que se não bloqueia, exclui, falamos oralmente, pois é nesse campo que tenho liberdade para expressar aquilo que compartimos sem a pressão da consulta de Celso Cunha e Lindley Cintra.
            Fernando (ainda não entende o que está acontecendo, um pouco perplexo vacila e pergunta) – Como isso? Estrela?
            Clarice (como se parecesse óbvio essa aparição, sorri e responde) – Quem mais poderia ser? Trump? O pato Donald? Amigo...  (pausa) o que você está sentindo é tão comum a todos nós que me envergonho de falar o evidente. Entendo que o óbvio é subjetivo e que cada um lê conforme as suas experiências, por isso, muitas vezes, as minhas cartas estavam inconclusas, frases de espaços a preencher, fora proposital. Saiba que sinto saudades das nossas conversas na universidade e estranho até hoje seu gosto por café amargo, sem açúcar ou adoçante, mas já não estranho a sua peculiaridade diante às impressões mundanas. Ah! Não venho trazer a paz, mas a espada. Esse conflito vivido é tão natural como o céu é azul.
            Fernando (ouve tudo estarrecido tentando assimilar aquela cena e fala consigo mesmo) – Ai Jesus! Devo ter chegado ao estágio de alucinações...
            Clarice (interrompe e grita) – Pessoa! Olhe para mim.
            Fernando (olha rapidamente para Clarice com cara de espanto)
            Clarice (fatigada) – Depois de tanto tempo fisicamente longe, de todas essas cartas, você ainda quer perder tempo com essa baboseira de susto? Olhe para frente, pela janela, há um terreno baldio? Ou há um mundo? Há lixo ou há reflexo? (Fernando se levanta e olha para a janela – plateia).

            (Enquanto Clarice fala Fernando a ouvi olhando pela janela)

            Clarice – Sabe o Zygmunt Bauman?
            Fernando – Mais ou menos.
            Clarice – Então, morreu semana passada e ele disse que: “as redes sociais são uma armadilha”. É, parece mesmo um artifício para os fugitivos da solidão. Como você sobrevive sem energia elétrica?
            Fernando – É por pouco tempo, Estrela.
            Clarice – Ah, você sempre tão carinhoso, ainda não esqueceu o meu apelido de tempo escolar, obrigado por manter esse vocativo. Então, depois que ele morreu, as redes sociais trouxeram seus escritos e ele escreveu algo sobre amor líquido, mas eu não entendi muito bem, acredito que tem a ver com as nossas relações efêmeras e descreve essa fragilidade humana sobre o rótulo de amor líquido. Ah, por favor, se você ler algo sobre isso me escreva rapidamente. Gostaria de saber a sua opinião, talvez você possa me esclarecer sobre a minha condição. Hoje carrego o fado de uma vida incerta, acho que também estou incrédula sobre as superficialidades dos meus relacionamentos e isso reflete nas postagens minhas no Facebook. Lá eu encontro um caos frequente de ódio e revolta, a maioria são pseudoanalistas políticos e sociais de cadeiras confortáveis e dedos ágeis dotados de uma precária competência emocional.
            Fernando (volta-se a olhar para dentro do quarto com nervosismo) – Estrela, para! O que você veio fazer?
            Clarice (ruborizada) – ah, desculpa! Bom, eu acho que vim para me despedir e tentei inventar uma história, pois me arrependi ao encontrar você assim, tão... perto.
            Fernando (assustado) – Despedir?
            Clarice (rápida) – Eu morri atropelada.
            Fernando (pasmo) – Como isso aconteceu?
A imagem da estrela se apagou, no justo momento em que a única luz que mantinha a claridade do diálogo se desfez. O poste de luz continuava a piscar, na sua incansável epilepsia.

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