Praia é a sua capital, seu hino nacional, intitulado “Cântico da Liberdade”, reúne elementos conhecidos da temática libertária e fraterna de um povo arquipélago, assim Cabo Verde é “abraçado” pelo oceano atlântico, tem sua língua oficial o Português, seu clima é árido e a escassez de recursos naturais e de chuvas revelam uma predisposição da sua população a emigrar.
Dessa forma a literatura cabo-verdiana refletirá a problemática do evasionismo, ou seja, uma tendência da população em abandonar o país devido as condições difíceis de vida. Um dos principais nomes desse movimento evasionista é Osvaldo Alcântara, pseudônimo poético de Baltasar Lopes (1907 – 1989), que inicia uma espécie de “pasargadismo” cabo-verdiano.
Para exemplificar a temática da evasão, temos em seu poema “Itinerário para pasárgada” uma alusão ao poema “Vou-me embora pra Pasárgada” do poeta modernista brasileiro Manuel Bandeira, assim como o poema de Bandeira não há rimas e apresenta versos livres. Essa intertextualidade que transcende fronteiras nacionais é estudada pelas teorias da Literatura Comparada.
Para Tenório (2015, p. 1) “Ambos citam Pasárgada no início do poema; Bandeira diz que vai, Alcântara afirma ter saudade; há uma descrição minuciosa de como é a vida em Pasárgada; Bandeira é amigo do Rei e faz de tudo o que quiser, Alcântara analisa os comportamentos dos habitantes e até o que há no céu.”
Saudade fina de Pasárgada… / Em Pasárgada eu saberia / onde é que Deus tinha depositado / o meu destino… / E na altura em que tudo morre…
[...]
Na hora em que tudo morre,/ esta saudade fina de Pasárgada / é um veneno gostoso dentro do meu coração.
Jorge Barbosa (1902 – 1971) e Manuel Lopes (1907 – 2005) são também dois nomes consagrados na literatura cabo-verdiana em que assim como Baltasar Lopes, fundam “Claridade”, revista considerada o marco da independência literária cabo-verdiana, sob o princípio de “fincar os pés na terra”, ou seja, preocuparam-se em “produzir uma literatura baseada na realidade cabo-verdiana e mais atenta às realidades de cada dia”. (COSTA, 2016).
Os poemas escolhidos para tratar o evasionismo em Jorge Barbosa, tendo por tema a insularidade são: “Poema do mar” e “Irmão” que constam em seu segundo livro intitulado “Ambiente” de 1941, em Manuel Lopes o “Poema de quem ficou” de 1949 do livro homônimo.
POEMA DO MAR
[...] O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...
[...] Este convite de toda a hora
que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
e ter que ficar!
IRMÃO
Cruzaste Mares
na aventura da pesca da baleia,
nessas viagens para a América
de onde às vezes os navios não voltam mais.
[...]
Ser levado talvez um dia
na onda alta de alguma estiagem!
como um desses barquinhos nossos
que andam pelas Ilhas
e o Oceano acaba também por levar um dia!
É possível observar nos fragmentos supracitados, “Poema do mar” e “Irmão”, os temas da evasão e da insularidade.
No primeiro poema está um convite para evadir: “o Mar nos faz para a evasão”, embora há também uma discussão sobre a tensão materializada pelo movimento dramático de ir e voltar das ondas do mar, é notório observar o explícito sentimento de indecisão, refletindo a instabilidade do eu poético: “Este desespero de querer partir e ter que ficar! ”.
No segundo poema o tema da evasão também está associado ao mar, porém aqui é através de um propósito definido, aparentemente uma solução aos problemas sofridos pelo sujeito poético, em que a evasão se torna um caminho escolhido por outros que foram e não regressaram: “nessas viagens para a América de onde às vezes os navios não voltam mais”.
Conforme Silva (2011, p. 21): “Jorge Barbosa será sempre associado à evasão decorrente da insularidade que atravessa a sua obra, mas essa descrição evasionista revela-se documental, de uma realidade que o poeta deseja fortemente registar”.
Para inferir a evasão no poema de Manuel Lopes, “Poema de quem ficou”, precisamos ler com mais cuidado, pois o tema não está totalmente marcado na superfície textual.
Comecemos a perceber a ideia do evasionismo refletida no título, quem ficou fora aquele que não foi, portanto, o poema irá discutir a visão do eu lírico por meio dessa perspectiva, daquele que permaneceu, sentindo saudades, inquietudes, esperanças e com expectativa “que nunca viram teus olhos no mundo que percorreste...”
Eu não te quero mal
por esse orgulho que tu trazes;
por esse teu ar de triunfo iluminado
com que voltas…
… Que teu irmão que ficou
sonhou coisas maiores ainda,
mais belas que aquelas que conheceste…
– bosques de névoa, rios de prata, montanhas de oiro–
que nunca viram teus olhos
no mundo que percorreste…
É possível perceber também que no poema de Lopes há também a ideia do partir e ficar, lembre-se do “Poema do Mar” de Jorge Barbosa, representado pelo eu lírico que se foi e o que permaneceu, o emigrado que regressa e o irmão que ficou a sonhar coisas maiores.
É perceptível identificar esse embate sobre a ideia de evasão nos poemas, sendo que a maioria das vezes o eu lírico se comporta de uma maneira instável, entre partir e permanecer, não sendo totalmente livre, mas sempre registrando uma culpa, mesmo que levemente interiorizada, culpa está refletida pelo indecisão e tensão nos versos.
Portanto é possível inferir que a partir desse sentimento tenha gerado um movimento contrário denominado anti-evasionista registrado a partir da década de 1960 e 1970 apoiado especificamente pelo poeta cabo-verdiano Corsino Fortes (1933 – 2005) morto aos 82 anos em que usou a poesia como forma de liberdade e de afirmação identitária.
Para exemplificar melhor esse movimento anti-evasionista tomemos os poemas de Ovídio Martins (1928 – 1999) que assinalam explicitamente esse sentimento. No livro, repare no título: “Gritarei, berrarei, matarei: não vou para Pasárgada” (1973), temos os poemas: “Processo” e “Anti-evasão”.
PROCESSO
Não é verdade / meu irmão / não acredites nisso / A fome que vimos / gramando / século de riba de século / não foi a estiagem / que a pariu [...]
A estiagem nada / tem com isso / Quem é / que tempo sem conta / te vem explorando / terra nossa / Quem é / que nos anos de crise / te condenou à morte / povo meu.
ANTI-EVASÃO
Pedirei / Suplicarei / Chorarei / Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão / e prenderei nas mãos convulsas / ervas e pedras de sangue / Não vou para Pasárgada
Ambos fragmentos dos poemas estão em um livro que alude ao poeta brasileiro Manuel Bandeira, e seu reconhecidíssimo poema.
É notório o uso dessa intertextualidade para firmar que não interessa o sentimento de evadir, ir embora para um outro lugar, pois a terra, a nação do eu lírico é aquela com as suas mazelas e belezas, frutos de uma história libertária e de uma busca identitária que reuniu braços e penas, a força e a resistência, é alvo de um lar construído por seus filhos nacionais.